A prisão de Guilherme Boulos e o recado do Estado a quem quiser resistir
Boulos tentava mediar, junto com outras pessoas, o diálogo entre os moradores e a Tropa de Choque, e foi acusado de incitação à violência e desobediência. ''Cometem a violência de despejar 700 famílias, e eu que sou preso por incitação à violência?'', indignou-se Boulos.
Em nota, a PM afirmou que teria atendido a uma solicitação de apoio aos oficiais de Justiça e que moradores resistiram à reintegração com pedras, tijolos e barricadas com fogo. Um comandante da polícia militar que participava da reintegração argumentou que o caso de incitação à violência era uma reincidência, e citou manifestações nas cercanias da casa do presidente Michel Temer em 2016, das quais Boulos participara.
Após prestar depoimento no 49o Distrito Policial, em São Mateus, o coordenador do MTST foi liberado ainda na noite de terça. Ele assinou um termo circunstanciado, sob acusação de resistência (opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio).
Resistência significa utilizar os meios possíveis e ao alcance de cada um para demonstrar sua insatisfação. Isso ocorre com as elites econômica e social brasileiras, que não fazem de rogadas ao usar recursos financeiros para fazer valer sua vontade; inclusive tomando as ruas em protestos. Mas quando trabalhadores e movimentos sociais prometem resistência, a ação vira caso de polícia?
A criminalização da resistência de apenas um dos lados mostra o quanto os atores de nosso sistema político são incapazes de entender o que é, de fato, uma democracia. Chamar de violenta toda forma de resistência com a qual não concordamos é, no mínimo, infantil. Dessa forma, ao que tudo indica, a detenção de Guilherme Boulos não ocorreu por sua atuação na mediação entre despejados e força policial, mas por seu papel na resistência social e política brasileira. Sua voz tem sido uma das principais nas críticas ao governo Michel Temer, assim como também era durante o governo Dilma Rousseff. Ou seja, essa é sim uma prisão política.
Por isso, é preciso calá-lo ou reduzir sua credibilidade. Para que a narrativa da criminalização de movimentos sociais seja efetiva na mídia, nas redes sociais, nos espaços políticos. Narrativa que quer inverter os sentidos das palavras e transformar resistência popular em ameaça à democracia e à governabilidade.
Boulos é liderança do principal movimento social de massa deste país em termos de centralidade da pauta, capacidade de mobilização e visão de atuação hoje. Um movimento com uma agenda antiga, mas com uma equipe que sabe se comunicar e influenciar a disputa simbólica da narrativa, pela mídia, pelas redes sociais.
E vem exatamente do posicionamento crítico adotado contra a administração federal petista o respeito de vários setores da esquerda para com o movimento e com ele. Esse respeito e essa capacidade de mobilização, que conseguem colocar dezenas de milhares de militantes nas ruas quando preciso, assusta muita gente.
Que prefere vê-lo preso do que articulando ou em cima de um caminhão de som.
Essa seria uma forma do poder público de São Paulo, mas não apenas ele, de dar um ''recado'' aos movimentos sociais. Daqui para a caça aberta nas ruas, escolas e empresas é um pulo. Esse tipo de ação é uma amostra do que está acontecendo com parte da esquerda brasileira, com um macarthismo à brasileira se instalando aos poucos, como ação sistemática de limpeza ideológica. Já vimos, aqui e ali, a perseguição a quem usa roupas vermelhas e a agressão em espaços públicos contra quem defende determinado ponto de vista. Até o juramento de Hipócrates foi rasgado por médicos que acham normal não prestar atendimento a alguém que não compartilha da mesma opinião política que eles.
Apesar de conquistas sociais obtidas na última década, o governo do PT não atendeu às pautas históricas propostas pelos movimentos sociais – o que não seria nenhuma ''revolução'', mas melhoraria a vida de milhões de brasileiros que se mantêm excluídos. Pelo contrário, em nome da ''governabilidade'' fez alianças espúrias, apoiando forças econômicas e políticas que eram contrárias a esses interesses populares, ignorando o suporte oferecido por esses mesmos movimentos para um mandato que significasse uma mudança de paradigma.
E o Brasil sob Michel Temer só piora esse quadro, com o desmonte do simulacro de Estado de bem-estar social que temos por aqui por conta da Constituição Federal de 1988 e por décadas de lutas do sociais.
Todos os movimentos sociais sabem o que é serem considerados criminosos simplesmente por lutarem pelos direitos que lhes são garantidos pela Constituição. Sabem o que é levar cacete por representar o que está em desacordo com a visão hegemônica de ''progresso'' e crescimento econômico, seja no campo ou na cidade. E ainda guardam na memória as cicatrizes deixadas pelo passado, temendo que voltem a ser caçados dependendo do clima político do país.
Ninguem é obrigado a gostar de Guilherme Boulos. Mas quem preza pela liberdade deveria repudiar a sua criminalização e a dos movimentos sociais populares, da mesma forma que deve ser repudiada a criminalização de qualquer liderança social, de direita ou esquerda.
Pois, hoje é com ele. Depois, com uns sindicalistas, operários, padres, jornalistas…
Amanhã, quem sabe, não vai ser com você?
Leonardo Sakamoto é jornalista, cientista político, coordenador da ONG Repórter Brasil e conselheiro do fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão. O presente texto foi publicado em 17/01/2017 no Blog do Sakamoto