Elocubrações de uma mulher negra
“Moro no Brasil, não sei se moro muito bem ou muito mal, só sei que agora faço parte do país e a inteligência é fundamental”[i]
Falar da realidade brasileira é sem dúvida um desafio a nossa capacidade de análise. Oscilamos entre a propaganda do paraíso da diversidade, onde todas as pessoas se divertem, se misturam e celebram ao sol, com carnaval, belas festividades e a biodiversidade é abundante em todo o território. Entretanto, esse também é o país que apresenta altos índices de violência urbana, onde o racismo é crime, mas não há pessoas presas e o Estado é um dos maiores violadores de direitos das pessoas vulnerabilizadas.
Descrever esse cenário é também identificar quem são os mais afetados com tudo isso: o Brasil celebra sua diversidade étnica/cultural/religiosa, com sua composição de povos originários que foram dizimados e escravizados, negros que vieram para cá arrancados do continente africano e com brancos que foram convidados a desfrutar das terras brasileiras com diversos subsídios. Mas quem são as vítimas das ações perversas desta sociedade?
Nos últimos anos, o contexto do Brasil se caracteriza pelo acirramento dos conflitos, pelo aumento da intolerância religiosa, do racismo e da violência, que chega a todos os espaços sejam urbanos ou rurais. Há um crescimento da violência de gênero e um retrocesso na justiça de gênero (com 12 mulheres assassinadas por dia, sendo mais de 70% mulheres negras) e uma pessoa LGBTTQIAP+ morta a cada dois dias. Todas essas questões apoiadas ou impulsionadas pelos fundamentalismos. As violações de direitos humanos contra a população negra é uma prática sistemática, os dados do homicídio da juventude negra revelam o poder de extermínio do racismo brasileiro: 63 mortes de jovens negros por dia. A omissão no registro de dados e estatísticas sobre este quadro de violências demonstram a vontade política de omissão dos governos e de não ter políticas públicas para mitigar esses problemas. As ameaças e crimes de fato contra lideranças tradicionais cresceu vertiginosamente. A morte, a coação e perseguição de pessoas defensoras dos direitos humanos são cotidianas.
Em um país que não tem compreensão e não reconhece o valor da diversidade religiosa, não surpreende a atual perseguição às espiritualidades afro-brasileira e indígena. Ambas têm sofrido vários tipos de ameaça e pressão, que seguem revelando o vínculo entre interesses financeiros de grupos ligados à mineração, agronegócio e mercado imobiliário, uma vez que, uma forma de desterritorialização de uma tradição indígena ou de comunidades negras tradicionais, por exemplo, é justamente atacar ou eliminar sua religião, que oferece a cosmo percepção e o sentido de vida a estes povos.
Da violência psicológica até o assassinato, mulheres de todas as raças, classes, credos, idades, regiões são marcadas por diferentes expressões de violência. Violências estas cuja intensidade e frequência tendem a se intensificar contra mulheres que carregam outros marcadores sociais da diferença, como mulheres não brancas, não cisgênero, não heterossexuais, e de classes sociais com menor poder aquisitivo. De todas as violências, o feminicídio é aquela que consuma, no crime contra a vida de uma mulher, o ódio que fundamenta esta e todas as outras violências,
No Brasil os números de feminicídio seguem em alta e o país ocupa a 5ª colocação no ranking mundial de acordo com Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Human os (ACNUDH). Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, neste ano 3.913 mulheres foram assassinadas com 230.160 casos de lesão corporal dolosa por violência doméstica, registrados na polícia civil. No mesmo período 1350 casos foram registrados como feminicídios, dos quais 61,8% cometidos contra mulheres negras.
A despeito dessa alarmante realidade (ou mesmo em reforço a ela) as políticas para as mulheres durante governo Bolsonaro foram enfraquecidas. Conforme demonstrado no relatório do Inesc de 2022, “A conta do desmonte – Balanço do Orçamento Geral da União”, a execução do recurso do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) foi de 42,6% a 77,7% entre 2019 e 2021. Salientamos que este foi o órgão direcionado a atender mulheres, negros e negras, indígenas, idosos, crianças e adolescentes, população LGBTIQAP+ e pessoas com deficiência. Ademais, o orçamento de 2022 para mulheres foi o mais baixo dos quatro anos de governo.
Com o início do governo Lula, busca-se a recuperação das políticas públicas que foram desmontadas na última gestão, mas as questões são bem profundas, não tratando-se “apenas” do aporte de recursos. As estruturas que acreditávamos estarem montadas no Estado foram corroídas por dentro, com uma gestão que se dedicou em destruir os frutos da luta dos movimentos sociais desde o período da redemocratização do Brasil. Exemplo disso foram os ministérios da mulher e de meio ambiente, que explicitamente foram contra os propósitos de fundação de suas pastas, pautando-se inclusive em discursos baseados na religiosidade cristã com leitura fundamentalista. Ou seja: um cristianismo colonizador e opressor que se impõe como única verdade sobre qualquer outro, que legitima a violência e a exploração e que vê o Estado como um braço da ação da igreja colonizadora.
O fundamentalismo religioso se soma ao sociocultural agregando justificativas ideológicas de origem no discurso religioso, descoladas dos contextos históricos da produção dos textos, a exemplos de certas leituras literais da Bíblia, e enraízam as justificativas para a “naturalização” da violência de gênero. Somado a isso, o fundamentalismo religioso em geral demoniza outras expressões baseadas na fé, que não a sua própria. Sabemos que espaços baseados na fé podem dar vitalidade no tempo a pensamentos e ideologias, e isso é péssimo quando se trata dos fundamentalismos.
Nesse panorama estão identificados os mais vulnerabilizados, mas é necessário pontuar como podemos superar estas situações. O primeiro ponto é considerar que para superação dessas mazelas é preciso envolvimento de todas as pessoas. Não se trata de problemas que a criação de legislação possa resolver, mesmo que fossem aplicadas. A base destes problemas é a intersecção da questão racial, de gênero que ocasiona a questão de classe, trata-se da base de pensamento da sociedade que hierarquiza as pessoas, desumaniza, diz quem pode ou não viver. Para mudar isso é necessário um processo de reeducação em todas as esferas sociais. E como isso é possível? Por meio do envolvimento de atores que constroem senso comum, que constroem ideologias e dos que são responsáveis por executar as políticas e legislações pactuadas.
Podemos sempre afirmar que o problema do Brasil não é a falta de leis, e sim a não aplicabilidade das mesmas. Nossa constituição é considerada uma constituição cidadã, pois trata de questões profundas da sociedade, e caso ela fosse aplicada na integralidade, resolveríamos muitas das mazelas que afligem as populações mais vulnerabilizadas. Porém, a quem interessa a aplicabilidade dessa constituição? Com certeza não é a quem mantem seu poder econômico, social e político por meio da opressão e subordinação dos mais vulnerabilizados.
É preciso que estes grupos julgados matáveis tenham representatividade no legislativo, no judiciário e no executivo para superarmos esta situação. É preciso também que os espaços religiosos se comprometam na formação de fiéis comprometidos com a vida e com os direitos das pessoas. Sabemos o poder de influência que os espaços religiosos têm na sociedade, e que vem esse poder é comumente utilizado para o ódio e não para o amor.
Por fim é necessário reafirmar a humanidade como valor básico, reafirmar o respeito a integridade das pessoas, de todas elas, com suas especificidades, coletividades e individualidades. Esse é o caminho para superar o racismo, machismo, ódios e intolerâncias, e para isso precisaremos de todas as pessoas. Será trabalhoso, mas possível.
[i] Composição de Wallace Jeferson Lacerda Silva, gravada por Farofa Carioca https://www.youtube.com/watch?v=IcV3rARmbIk
*Ana Gualberto é Mestra em Cultura e Sociedade, Historiadora, Diretora Executiva de KOINONIA, integrante da Rede de Mulheres Negras da Bahia e do Coletivo Iyá Akobiodè, Egbon D’Osun do Ilê Axé Ofá Omi Layó. Tem foco na área de pesquisa histórica e em consultorias com ênfase nos debates étnico raciais, atuando principalmente nos seguintes temas: identidade étnico racial, direitos humanos, população negra, comunidades remanescentes de quilombo, comunidades negras tradicionais, intolerância e racismo religioso, mulheres negras e cultura afro-brasileira.