Confluência de saberes
Em novo livro, Antônio Bispo dos Santos nos leva a um conflito com a realidade cultivada sobre o que concebemos como humanidade
Jefferson Barbosa*
Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro rio. Ao contrário: ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece. Quando a gente confluencia, a gente não deixa de ser a gente, a gente passa a ser a gente e outra gente. A partir de ideias como essas, Antônio Bispo dos Santos, o Nego Bispo, nos leva a um conflito com a realidade que é cultivada diariamente sobre o que concebemos como humanidade. Em A terra dá, a terra quer, ele autoinscreve a ideia de humanidade/subjetividade no sujeito quilombola.
Quando toma conceitos como terra e humanos a partir de Saco do Curtume, quilombo onde vive no Piauí, não se referencia em intelectuais quilombistas como Beatriz e Abdias Nascimento, mas na própria existência de seus conterrâneos, parentes e companheiros de luta. Bispo confronta a branquitude, o colonialismo e a própria sociedade brasileira a partir de uma cosmopercepção coletiva própria. No livro editado pela Ubu com a Piseagrama, ele nos mobiliza a entender, a partir de elementos da própria terra e da existência humana, como o sistema criado pelas sociedades ocidentais vai contra a nossa própria existência e as condições de uma vida que flui de modo orgânico, ou quase, como a natureza.
Legitimidade
Nego Bispo provoca a partir do básico. Nos mobiliza a uma revolução fundamental, e não instrumentalizada pelo Norte Global e pela lógica capitalista, ou mesmo pela lógica de organização social das academias europeias brancas que fundamentam certa ideia de esquerda. Pois enquanto o campo progressista for guiado por cabeças brancas, ele não terá sentido para a população brasileira, e nisso Bispo tem toda a razão. Só precisa armazenar quem não confia, quem tem medo de a natureza não fornecer, medo de a natureza castigar, diz ele ao alertar para a insensatez que é o comportamento acumulador dos nossos dias.
Bispo compartilha vivências, tecnologias e saberes originários, dialoga com indígenas e faz erguer do chão a defesa da contracolonialidade, que nada tem a ver com a decolonialidade defendida nas universidades. A ideia de contracolonização é para quebrar o sistema, com inteligência, de modo circular. A sustentabilidade deixa de ser uma condição a ser alcançada e passa a ser uma premissa orgânica. O desequilíbrio é impertinente na construção cotidiana proposta pelo quilombola. Para os povos quilombolas, “quem não sabe dançar e cantar no batuque, quem não sabe fazer uma comida, quem não se emociona com a cantiga de um pássaro, não tem um modo agradável de viver”.
Humano não é quilombola, pode o quilombola ser humano? Nesse aspecto de reinvidicar o tratamento que a humanidade dispensa a si própria, Nego Bispo nos mostra que o sujeito quilombola tem uma existência para além dos termos que constituem a concepção de humano dos nascidos sob o eurocristianismo. O autor disputa a própria linguagem, e talvez por isso mesmo ainda não tenha se entendido com o livro. Essa deve ser uma tarefa muito mais nossa, como leitores, que dele, que abre, dá um nó na nossa orelha e desconecta qualquer possibilidade de conforto.
As cidades também são faladas por Bispo, mas na perspectiva das periferias, onde cabem os quilombos: “A favela vive sem os alphavilles, mas eles não sobrevivem sem a favela”, fazendo a gente lembrar de O som ao redor (filme de Kleber Mendonça Filho) quando critica a política de segurança pública incensada pela classe média. Nego Bispo não aceita desfeita, por isso a leitura de A terra dá, a terra quer é um gesto de gentileza antes de tudo com ele, mas também coletivo. Aqui se aprende sobre comida, política, arquitetura e sustentabilidade. Antes de terminar, a conclusão a que chegamos é que a possibilidade de um outro modo de viver existe, e nos dá esperança, mas também nos garante que ela não virá sem luta.
*É editor do PerifaConnection, integrante do Voz da Baixada e está escrevendo um ensaio biográfico sobre Mae Beata de Yeamanjá.