Célia Xakriabá: ‘O Congresso não vai mais ser cinza, ele vai ter a nossa cor: jenipapo e urucum’

De Letícia Leite/SUMAÚMA
| by Sumaúma

Entrevista original: https://sumauma.com/celia-xakriaba-o-congresso-nao-vai-mais-ser-cinza-ele-vai-ter-a-nossa-cor-jenipapo-e-urucum/

Em entrevista exclusiva à SUMAÚMA, a parentíssima Célia Xakriabá conta como a poética se tornará borduna no parlamento – e como a pequena, mas forte, bancada do cocar vai enfrentar a poderosa bancada ruralista

Letícia Leite

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SUMAÚMA: Quem é Célia Xakriabá e o que o Brasil e o mundo podem esperar de uma das deputadas indígenas mais jovens do planeta?

CÉLIA XAKRIABÁ: Sou Célia Xakriabá, do povo indígena Xakriabá, do bioma Cerrado, dessa força que vem de raiz profunda. O território Cerrado, bioma Cerrado, onde vivem mais de 70 povos indígenas. O bioma Cerrado faz divisa com mais de 11 estados brasileiros e tem como referência ali no norte de Minas Gerais o povo Xakriabá, que é a maior população indígena do estado. Também sou da Articulação Nacional das Indígenas, cofundadora da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), e agora sou a primeira indígena deputada federal pelo estado de Minas Gerais, rompendo com o racismo da ausência. Como deputada indígena mais jovem do planeta, tenho um compromisso com a mulher mais velha da humanidade, que é a Terra.

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Como você se prepara para enfrentar um congresso majoritariamente masculino e branco?

As pessoas me perguntavam, ainda quando Sonia estava no Congresso: “O que vocês vão poder fazer se vocês são 2 mulheres indígenas no Congresso Nacional com 513 deputados?”. E eu falava: “Nós somos menos de 1% da população brasileira, somos 5% da população do mundo e protegemos mais de 80% da biodiversidade. Nem sempre a maioria está fazendo melhoria. Nós somos minoria, mas estamos fazendo a melhoria de um país, de um planeta. Estaremos no Planalto fazendo pelo planeta”.

E quando me falam: “Mas vocês têm muito menos tempo de Congresso Nacional. Aqui é uma casa de leões”. Eu respondo: “O que é leão para nós que somos onça?”. Conhecemos bem o território. E podemos até ter menos tempo de Congresso Nacional, podemos até ter menos tempo de ministra, podemos até ter menos tempo de secretário de saúde, podemos até ter menos tempo de presidenta da Funai, mas nós temos muito mais tempo de Brasil. Falamos isso com o presidente Lula na COP27, o Brasil só não perdeu o protagonismo internacional nas questões ambientais porque nós fomos ministras do meio ambiente.

O Congresso Nacional tem um salão verde, mas é um salão verde desmatado. Nós chegamos para reflorestar com as nossas ideias, com os nossos posicionamentos. Somos poucas, mas também a gente não vem só. Nós entendemos que é um momento de virada no Brasil. É um momento de virada para a humanidade. E a humanidade precisa entender a nossa responsabilidade.

Quando se demarca um território indígena, é oportunidade de ter água para beber. Quando se demarca um território indígena, é a oportunidade também de ter respiração. Nós somos pneumologistas. Nós sustentamos o pulmão do mundo e das pessoas. Nós precisamos caminhar juntos. Esse é um ministério de articulação, meu mandato é um mandato de articulação. Nós queremos manter a vida das nossas lideranças, das nossas crianças, das nossas mulheres.

Durante a retomada da Funai, na segunda-feira, 2 de janeiro, você falou da “política do mistério”. Como é essa dimensão espiritual da política?

Quando eu entrei no Congresso Nacional para receber o crachá de deputada federal, me lembrei que, na última vez em que nós estivemos ali, depositamos mais de 200 caixões representando os projetos de lei de retrocesso e as lideranças indígenas assassinadas. [Fomos recebidos com] spray de pimenta, bala de borracha, até rasguei minha orelha em frente àquele Congresso.

E foi a reza de fogo das mulheres Guarani que fez chover somente naquele lugar. Naquele momento, em 2015, quando nós pensávamos que não conseguiríamos barrar a PEC 215 [projeto de emenda constitucional que transfere do Executivo para o Congresso o poder de demarcar terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação], foi pelo canto, pelo maracá, que fez acabar as luzes do Congresso Nacional. Começou a chover e até hoje eles não conseguiram votar. Estarei agora num lugar onde há poder de legislar, de fazer lei, de poder falar. Mas é preciso dizer que, para além das leis judiciais, as nossas leis são ancestrais. E é importante levar [ao Congresso] essa força das leis ancestrais.

Estamos aqui no Ministério dos Povos Indígenas, pela primeira vez na história, caminhando junto com o mistério dos povos indígenas. O mistério da terra, o mistério da floresta, o mistério do Cerrado, da Mata Atlântica, do Pampa, da Caatinga e do Pantanal.

Você é uma criadora de palavras: “parentíssima”, “mulheragem”… Eu queria que você me falasse [...] o que são as loas, e o que que [...] as loas têm a ver com o seu modo de falar?

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As loas são esse lugar da entoação da palavra Xakriabá, que tem uma melodia no jeito de falar. Nos últimos tempos, as pessoas falam assim: “Celinha, você ganhou essa eleição porque tem um jeito diferente de falar. Você é mais poética”. Por muitas vezes, as pessoas vão ver no Congresso Nacional a poesia virando borduna, porque a poesia é algo que atinge, não na velocidade, na altura que a gente fala, mas na sensibilidade. Nesse momento, quando chegamos aqui também nessa melodia da palavra, nesse jeito diferente de falar, ocupando vários lugares com a presença indígena. Isso é reflorestar também. O reflorestar é quando a gente faz renascer esperança também em pessoas que estavam adormecidas. O Brasil não estava morto, o Brasil estava adormecido, e com a nossa presença, o nosso jeito de chegar diferente, com a força da nossa pintura, com a força da nossa voz, da nossa oralidade, do nosso canto, vamos continuar fazendo lei sem perder a melodia da palavra. Vamos continuar fazendo lei sem perder o entoar do nosso cantar.

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Quem é Sonia Guajajara e o que ela representa pra você hoje?

Sonia para mim é uma referência, uma inspiração, uma irmã, uma parentíssima, guerreiríssima ministra que também vem desse ajuntamento de mulheres. Somos cofundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. [...] Quando as pessoas perguntavam se estava preparada, ela falava: “Nós estamos preparadas. Nós nos preparamos na luta”. E quando as pessoas nessa eleição perguntavam: “Mas vocês estão preparadas? Suas candidaturas são viáveis?”. Eu falava: “As candidaturas nossas não são somente viáveis, são enviadas. Porque há um chamado pela Terra nesse momento. Já que as pessoas não escutam a Terra, não entendem a Terra como maior autoridade, nós vamos nos candidatar junto com a Terra”. E quando as pessoas falavam assim: “Mas será que é a hora? Não existe um fato político que vai conseguir fazer vocês eleger”. E aí, quando eu falava assim: “Estuprar meninas Yanomami não é um fato político? Violentar meninas Guarani-Kaiowá não é um fato político? Matar mulheres não é um fato político? O ecocídio não é um fato político? O genocídio não é um fato político? O que é um fato político?”.

Foi a Sonia Guajajara que te convidou pra ser deputada? Como foi esse convite?

Essa construção foi conjunta, pela bancada do cocar. Nós falamos: “Se tem a bancada ruralista, vamos lançar a bancada do cocar”. Quem é que tem mais condição de fazer o enfrentamento à bancada ruralista senão a bancada do cocar, que traz essa força da Terra? E foi quando ela me falou: “Celinha, vamos!”. A gente só chega porque existem outras pessoas que abriram caminho também. Mesmo sem conseguir estar nesse lugar. E aí, no ano passado, as lideranças falaram: “Vocês têm que ir”. Foi quando nós decidimos ir.

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O que é a Anmiga? Você vê a Anmiga como uma corrente de política indígena?

Anmiga, a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, é uma articulação que traz a força das mulheres de todas os biomas. Mulheres-terra, mulheres-semente, mulheres-água, mulheres-raiz. E eu falo que nós não somos mulheres-somente, somos mulheres-semente. O século 21 é das mulheres indígenas.

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Em 2019, Sônia puxou a jornada “Sangue Indígena: Nenhuma Gota Mais”, percorrendo 12 países e 20 cidades em 35 dias, denunciando o que acontecia no Brasil. Protocolamos no Tribunal de Haia, na Holanda, denúncia contra Bolsonaro do crime de ecocídio da humanidade, e as pessoas falavam assim: “Por que vocês vão para Europa? Você não sabe que eles são grande parte do problema?”. E nós falávamos: “Essa grande parte do problema tem que somar como maior parte da solução”.

Questionamos a ratificação do acordo Mercosul, também, que premiava o governo Bolsonaro, e falamos da importância do parlamento europeu e de todos os países, assim como do Reino Unido, para criar leis de rastreabilidade para garantir que esses produtos não venham de territórios indígenas, não venham de trabalho escravo. Como resultado dessa pressão, agora, na COP, o parlamento europeu estava com a lei antidesmatamento.

Nós questionamos, também, que na lei antidesmatamento só se considerava a Amazônia, não se considerava os outros biomas, a Mata Atlântica, o Cerrado, o Pampa, o Pantanal. Quando não há leis de proteção ambiental a todos os biomas, isso significa legalizar, pressionar mais ainda a expansão agrícola nesses outros biomas. Quando você faz isso, você também coloca a Amazônia em mais conflitos territoriais e maior pressão também de produção e de desmatamento.

Nós desconhecemos qualquer projeto que tenha visitado todas as regiões do Brasil, todos os biomas brasileiros, nessa escuta sensível de entender que, se o palco não é suficiente para escutar todas as mulheres indígenas, o nosso microfone vai ser o maracá, o nosso palco vai ser deslocar para o chão do território. E foi isso que nós fizemos com o projeto da caravana, entendendo que o microfone mais amplo que a gente tem é escutar as mulheres indígenas a partir da bioeconomia. A Anmiga tem como projeto central o combate à violência contra as mulheres indígenas nos territórios. No Ministério dos Povos Indígenas, temos essa provocação: a de ter esse núcleo relacionado à violência e à violação das mulheres indígenas.

Ainda pela Anmiga, na Marcha Mundial das Mulheres vocês organizaram um grande desfile. O que a vestimenta tem a ver com política?

Nós temos falado em descolonizar a moda, porque para nós não é exatamente moda. Eu falo que tanto na música quanto na moda a tendência anual não é a que pega, o que pega, para nós, é uma tendência mais ancestral. Então, quanto mais velho, mais bonito. A nossa moda não é anual, a nossa moda é ancestral. Para mim, esse vestimentar é uma roupa que veste, reveste e subverte.

Todo o design da minha campanha em Minas Gerais foi inspirado nas minhas vestimentas. É esse lugar de trazer encantamento, as bonitezas, porque política não precisa ser esse lugar truculento. Política é o lugar que a gente faz com cultura. Onde não podia falar da campanha, eu fazia poesia, eu trazia a luta, a emergência dos povos indígenas. E isso em palcos importantes, junto com alguns artistas, junto com Nando Reis, com Gilberto Gil. Então, é esse lugar que a gente traz à tona, entendendo esse jeito de fazer uma política que tem as vozes do território, que tem as cores do território, que tem as cores de nosso bioma.

Eu sempre mantive a minha autonomia vestimentar. Tenho vestido pintado durante o julgamento do STF. Enquanto nós estávamos ali, na vigília, eu parava, pintava minhas roupas. Faço isso não porque tenho tempo, mas porque nós precisamos ter autonomia de nosso tempo, e somente tem tempo aqueles que retomam o tempo. Eu falo que a luta pela liberdade, pela verdadeira autonomia, não é exatamente quem tem mais dinheiro, é quem tem a liberdade do tempo.

Como ser parlamentar, como ser ministra, como ser presidente da Funai, como ser professora, advogada sem perder a nossa autonomia vestimentar, sem perder a nossa autonomia do alimentar? Porque nós podemos ser muitas coisas, mas o primeiro livro que eu li foi meu avô, a primeira caneta que eu segurei não foi exatamente para fazer o “x” da escrita, mas foi para pegar o jenipapo, escrever no meu corpo. Então, mesmo no Congresso Nacional, continuo tendo essa autonomia de me vestir com jenipapo. É a força do cocar que orienta o nosso pensamento, que orienta as tomadas de decisão. O cocar, para nós, é como se fosse a casa da cabeça. Ajuda a orientar esse lugar. Vamos juntas pintar o Congresso Nacional de jenipapo e de urucum. O Congresso não vai ser mais cinza, o Congresso vai ter a nossa cor.