Do neoliberalismo ao neofascismo no Brasil: impactos aos direitos humanos e às políticas sociais

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Desde a redemocratização do Brasil após a Ditadura Militar (1964-1985), o país enfrentou diferentes contextos políticos. Embora tenhamos passado por regimes neoliberais bastante ofensivos aos direitos sociais da população, nenhum período foi tão grave e alarmante como os últimos quatro anos, em que o conservador de ideologia neofascista, Jair Bolsonaro, esteve à frente da Presidência da República.

Para entender esse contexto específico e como chegamos até aqui, é importante traçar uma breve trajetória da história recente brasileira, situando-a numa estrutura econômica dependente e desigual em relação aos países de capitalismo central. Isto é, uma relação de subordinação entre nações formalmente independentes (Marini, 2011, p. 59), mas que em relações desiguais com centros capitalistas, os países periféricos se condicionam como estruturas econômicas, políticas e sociais atrasadas e dependentes (Bambirra, 2012, p. 66).

Essa estrutura é traçada em diversos pontos: a fragilidade industrial, a superexploração da força de trabalho; a expansão produtiva de matérias-primas e produtos agrícolas somente para responder à industrialização capitalista dos países do centro, a oferta de alimentos baratos no mercado internacional e a secundarização do consumo dos trabalhadores brasileiros (Bittencourt, 2016, p. 38).

Assim, fundado em um modelo agroexportador e latifundiário, sobretudo de commodities, o país transfere valor para os países de centro, ao passo que desprioriza a sua população, com rebaixamento das condições de vida, garantias sociais básicas e pouco efetivos os direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DHESCA).

Ainda que essa estrutura não tenha se alterado significativamente ao longo dos séculos de estruturação capitalista no continente latino-americano, devemos citar mudanças políticas recentes após a democratização que foram diversas em sua forma de desenvolvimento, mas também de combate à fome e à extrema pobreza, à violência e a efetivação democrática representativa, o respeito à diversidade étnica e cultural, o acesso à educação formal, entre outros.

Após a restauração da democracia brasileira, em 1985, e a promulgação da Constituição Federal de 1988, direitos humanos básicos foram formalmente assegurados, com implementações distintas desde então. No entanto, na década de 1990, com os presidentes José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso Collor, imperou-se o neoliberalismo puro, com o corte brutal de gastos públicos; a liberalização da economia, a abertura comercial e desregulamentação; a redução estatal sobre o setor privado; o investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições; a privatização de estatais; a reforma fiscal e tributária; e a fundação dos marcos de direito à propriedade intelectual, com aumento das taxas de juros (Ayerbe, 1998).

Na década seguinte, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, e depois Dilma Rousseff, em 2010, o período é caracterizado como “neodesenvolvimentismo”, ou o “desenvolvimento possível” de um país periférico dentro dos marcos do capitalismo neoliberal. Tais regimes são impulsionados por coalizões políticas na região, que incluem o apoio de trabalhadores, pobres, classes médias locais e setores da burguesia nacional e abarcam um certo equilíbrio entre Estado/Mercado; taxas de juros decrescentes, elevação de obras estatais, além de investimentos em políticas públicas de elevação de renda e escolaridade. Com essas condições, o Brasil chegou a sair do mapa da fome e reduziu a extrema pobreza, além de inserir segmentos populacionais com direitos historicamente negados, como negros e negras, nas universidades públicas e privadas. Esses investimentos, somados com o “boom das commodities"[1], inclusive foram determinantes para que o Brasil tivesse impactos tardios da crise capitalista global de 2008.

Contudo, a crise econômica e o “ódio de classe” levaram ao golpe institucional da primeira mulher eleita como Chefe do Executivo Federal pelo Congresso Nacional, escancarando a dependência e a colonialidade do país. Nem os avanços básicos à população foram permitidos pelo capital internacional e pelos setores oligárquicos nacionais, evidenciando a débil democracia latino-americana e as dificuldades da construção de um Estado independente (Bittencourt, 2016, p. 60).

Após o golpe, Michel Temer, vice de Rousseff, assumiu a governança de 2015 a 2018 e abriu as portas ao neoliberalismo puro. As reformas trabalhistas, da previdência social e o “Teto de Gastos”[2] do Estado brasileiro são a expressão desse momento. A convulsão social originária do impeachment armou os setores mais conservadores e atrasados do país, que alicerçados em estratégias digitais de redes de mentiras e convencimento, levaram uma das figuras mais grotescas da política legislativa do país ao topo do Executivo.

Este novo período, caracterizado como neofascismo liberal, é o pior já vivenciado em todo o período democrático. E Jair Bolsonaro, infelizmente, tem cumprido nestes quatro anos o que prometeu em campanha eleitoral. A gravidade foi ampliada com a pandemia de Covid-19, que ceifou a vida de 682 mil brasileiros, alavancada com a necropolítica negacionista de Bolsonaro, que recomendava remédios ineficazes, defendia a abertura completa do comércio e fazia propaganda pública contra as vacinas. Inclusive, foram somente ações judiciais organizadas por movimentos sociais, como nas Arguições de Descumprimento de Preceito Federal indígena (ADPF 709), quilombola (ADPF 742) e sobre despejos (ADPF 828) movidas no Supremo Tribunal Federal que garantiram a prioridade e vacinação in locu dessas populações e a proibição de despejos forçados durante a pandemia.

Parcas políticas sociais foram aprovadas neste período. O presidente chegou a vetar, inclusive, o apoio emergencial para agricultores familiares e camponeses (PL 823/21) e para o setor cultural (a Lei Aldir Blanc 2 e a Lei Paulo Gustavo). O cenário foi tão grave que o Brasil hoje atinge a marca de 33,1 milhões de brasileiros, 15,5% da população, em situação de insegurança alimentar grave (PENSSAN, 2022). O desemprego atinge 9,3% da população (IBGE, 2022) e a inflação brasileira é a 4ª maior dentre as principais economias mundiais.

Inclusive foi durante o auge da pandemia, que o então Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, recomendou que “se passasse a boiada” na desregulamentação e fiscalização ambiental. Neste campo os retrocessos são evidentes, a Amazônia Legal atingiu neste ano o maior acumulado de desmatamento com crescimento de 57%, houve expansão significativa do plantio de soja no Cerrado e duas queimadas graves que atingiram o Pantanal. Além disso, 1.774 novos agrotóxicos foram registrados, a maioria classificados como muito perigosos ao meio ambiente.

No tocante às políticas de reforma agrária e regularização de territórios quilombolas, o cenário é de paralisação total. Logo após o impeachment da Presidenta Dilma, o Ministério do Desenvolvimento Agrário foi extinto[3]. No governo Bolsonaro, as políticas de regularização de terras tornaram-se pautas adversárias e o órgão responsável pela reforma agrária e titulação de territórios das populações negras rurais, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) sofreu total desmonte de suas estruturas, orçamentos[4] e capacidade operativa[5].

No período do governo Bolsonaro agudizaram os casos de violência e criminalização contra defensoras/es de direitos humanos (DDHs). De acordo com a Relatora Especial da ONU, entre 2015 e 2019, 1.323 DDHs foram assassinados no mundo, sendo que o Brasil ocupava o 2º lugar no ranking mundial de assassinatos. Conforme a Global Witness, em 2020 o Brasil ocupava o 4º lugar no ranking de assassinatos de DDHs no mundo. A ampliação dos discursos de ódio de autoridades públicas, políticas de incentivo ao uso de armas[6], somadas à prevalente impunidade de graves crimes como os assassinatos de Marielle Franco, as violências políticas contra mulheres negras e pessoas LGBTQIA+ que ousam ocupar espaços institucionais, podem ser elencadas como causas para essa piora na agenda das/os DDHs.

O mecanismo de proteção a DDHs passa pelo seu pior momento. Criado em 2004, o Programa de Proteção para Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas enfrenta graves problemas de orçamento, participação social, transparência e ineficácia ou insuficiência de medidas protetivas. Enquanto isso, os riscos de perseguição de movimentos populares se ampliam com aprovação de Leis como Antiterrorismo (13260/2016) e tramitação acelerada de projetos que visam recrudescê-las, como o PL 1595/2019 que busca criminalizar manifestações sociais e lideranças (Terra de Direitos; Justiça Global, 2021).

E é neste ambiente de proliferação dos discursos de ódio, violência, repressão e desproteção de DDHs ameaçadas/os, que se aproximam as eleições presidenciais. Há ameaças candentes de um novo golpe, desta vez ainda mais violento, com possível emprego de armas pela sociedade civil bolsonarista e milícias.

E neste ano eleitoral há apenas dois caminhos em jogo. De acordo com a última pesquisa DataFolha[7], do eleitorado total, Luiz Inácio Lula da Silva[8] tem 47% das intenções de voto, ante 32% de Jair Bolsonaro. Apesar da vantagem, a pesquisa mostra que Bolsonaro cresceu 10 pontos entre o segmento denominado “seguro”, formado pelas famílias com renda entre 2 e 5 salários mínimos. Já entre o segmento “vulneráveis”, composto pelas famílias com renda inferior a 2 salários mínimos, Lula mantém vantagem.

O possível retorno de Lula trará novos desafios como acordos mais complexos fruto do governo de coalizão, o contexto legislativo conservador e a permanência de atores e milícias de extrema direita radicalizados e armados. Não basta derrotar Bolsonaro, é preciso derrotar o Bolsonarismo. Também teremos que nos preparar para as conhecidas estratégias do capital no neodesenvolvimentismo, como a economia verde, o avanço do capital financeiro e a participação ampliada de empresas transnacionais no território.

Oxalá possamos nos somar ao levante latino-americano de países que retomam o controle progressista como Argentina, Bolívia, Peru, Chile e Colômbia e que, ao menos, tenhamos a possibilidade de bons e justos combates na defesa árdua dos direitos humanos em sua totalidade.

 

Luciana Cristina Furquim Pivato, advogada popular. Especialista em direito penal e criminologia crítica. Coordenadora do Programa Nacional Direitos e Políticas da Terra de Direitos. Integra a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos e a Comissão Permanente de Defensoras/es de DH e Enfrentamento da Criminalização dos Movimentos Sociais do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).

 

Naiara Andreoli Bittencourt, advogada popular. Mestra e doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do Programa Iguaçu da Terra de Direitos. Integra a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a Articulação Nacional de Agroecologia e a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares.

 

Referências Bibliográficas

 

AYERBE, Luis Fernando. Neoliberalismo e Política Externa na América Latina. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

 

BITTENCOURT, Naiara Andreoli. A superexploração da força de trabalho no neodesenvolvimentismo brasileiro: uma crítica teórico-jurídica. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2017.

 

BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. Tradução de Fernando Correa Prado e Marina Machado Gouvêa. Florianópolis: Insular, 2012.

 

DHESCA Brasil. A urgência do fim da Emenda Constitucional 95 no enfrentamento da Covid-19 e no cenário pós-pandemia. Documento técnico subscrito por 192 organizações, movimento populares, conselhos, entidades sindicais, instituições acadêmicas e apresentado pelas amici curiae na Ação Direta de Inconstitucionalidade movida junto ao Supremo Tribunal Federal. Disponível em: https://direitosvalemmais.org.br/wp-content/uploads/2020/05/DOCUMENTO_STF_Maio_2020.pdf, Acesso em 25.08.2022.

 

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desemprego no 2º trimestre 2022. Disponível em https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php, Acesso em 25.08.2022.

 

MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência. Em: TRASPADINI, Roberta; STEDILE, João Pedro (orgs). Ruy Mauro Marini – vida e obra. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 131- 186.

 

PENSSAN. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19. II VIGISAN: relatório final. São Paulo, SP : Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022.

 

SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina: conflitos socioambientais, giro ecoterritorial e novas dependências. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

 

TERRA DE DIREITOS E JUSTIÇA GLOBAL. Começo do fim? O pior momento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas, 2021. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/uploads/arquivos/Relatorio---Comeco-do-Fim.pdf, Acesso em 26.08.2022.

[1] Maristela Svampa, a partir da leitura do conceito de neoextrativismo aborda o tema a partir do “Consenso das Commodities” (Svampa, 2019).

[2] O Teto de Gastos é fruto da Emenda Constitucional nº 95 que alterou a Constituição Federal de 1988 e limitou as despesas do governo brasileiro durante 20 anos, atingindo especialmente os direitos sociais.

[3] Medida Provisória 726/2016. Decreto nº 8789 de 14 de junho de 2016.

[4] Valores empenhados para aquisição de novas terras: R$ 140,4 milhões (2017; R$ 38,6 milhões (2018); R$ 21,1 milhões (2019) e R$ 2,1 milhões (2020). Valores empenhados com reconhecimento e indenização de territórios quilombolas: R$ 7,7 milhões (2016); 4,7 milhões (2017); 6 milhões (2018); 3 milhões (2019); 5 milhões (2020). Fonte: Portal da Transparência.

[5] Memorando-Circular nº 01/2019, determinou o sobrestamento de todos os processos de aquisição, desapropriação ou outra forma de obtenção de terras.

[6] No período, novas legislações ampliaram as possibilidades de porte e uso de armas, como os Decretos nº 9.845/2019, nº 9.846/2019, nº 9.847/2019, dentre outros.

[7] Disponível em: https://datafolha.folha.uol.com.br/eleicoes/2022/08/lula-mantem-47-das-intencoes-de-voto-e-bolsonaro-vai-a-32.shtml, Acesso em 26.08.2022.

[8] Hoje inocentado de todas as acusações e processos judiciais em que foi acusado.