Pautas socioambientais no Brasil: um breve histórico de ideias, movimentos sociais e instituições
[...] com o andar do tempo faltarão as chuvas fecundantes que favoreçam a vegetação e alimentem nossas fontes e rios, sem o que o nosso belo Brasil, em menos de dois séculos, ficará reduzido aos páramos e desertos áridos da Líbia.”[1], esse é um trecho de um discurso, proferido 1823, pelo político e naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), conhecido como patriarca (figura central) da independência do Brasil. Essa e outra vozes imortalizadas em documentos históricos, são evocadas pelo historiador José Augusto Pádua, ao atestar a existência de um pensamento crítico à devastação da natureza, muito antes das iniciativas conservacionistas e preservacionistas[2], da primeira metade do século XX. Outras fontes do século XIX mencionadas por Pádua, associavam a destruição da natureza, ao tripé: “trabalho escravo-latifúndio-monocultura”[3], percepção que ligava as transformações ambientais a modos de produção e sociedade. Mais de um século depois, em meados da década de 1970, ideias semelhantes reverberariam, com percepções mais aprofundadas, e reivindicações condizentes àquela época, tomaram forma de movimentos e organizações sociais.
A evolução do debate socioambiental no Brasil
A percepção de um modelo de desenvolvimento, danoso para o meio ambiente, e para as pessoas conectadas a ele suscitaram a pertinência de unir questões ambientais e sociais[4]. O socioambientalismo, é um conceito que nasce no Brasil em meados da década de 1970, momento em que vigorava a ditadura militar (1964-1985). Regime que intensificou a velha fórmula de gestão dos recursos naturais, subordinada ao desenvolvimento econômico[5]. Isso se deu através de programas desenvolvimentistas nocivos ao meio ambiente, aniquiladores para determinados grupos, como os povos indígenas. A articulação de movimentos sociais que contestassem esse modelo, era atravancada pela censura e violenta repressão. Em vista disso, iniciativas de luta socioambiental ganhariam expressividade à medida que a ditadura perdia a força, no fim da década de 1970, mas sobretudo durante o processo de redemocratização, na década de 1980.
Incrementava as pautas socioambientais, a percepção de que determinados grupos sociais e étnicos eram mais vulneráveis aos problemas ambientais. Paralelamente, se vislumbrava nesses grupos, um potencial fonte de saberes e práticas capaz de desenvolver atividades rentáveis de baixo impacto ambiental. Merece destaque a “Aliança dos Povos da Floresta” na Amazônia brasileira, que logrou significativa visibilidade na luta contra o desmatamento e em favor do extrativismo de baixo impacto ambiental na década de 1980. Protagonizada por seringueiros e indígenas, a aliança encontrou apoiadores de outras regiões brasileiras e também aporte internacional[6]. No outro extremo do Brasil, em Porto Alegre, destacou-se a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Fundada em 1971, ela buscava combater a destruição da fauna e da flora. Um de seus diretores, o engenheiro agrônomo José Antonio Lutzenberger, se tornou conhecido em todo país pela atuação crítica aos agrotóxicos. A luta por uma regulamentação mais estrita a esses produtos, obteve visibilidade na época, a ponto de contribuir para marcos regulatórios específicos para os agrotóxicos, primeiramente no Rio Grande do Sul e depois como lei nacional[7].
Ambientalismo e conexões internacionais
Entidades diversas, que emergiram no Brasil em meados década de 1980, integraram campanhas voltadas aos problemas socioambientais. A Campanha Contra Utilização de Energia Nuclear; “Adeus Sete Quedas”, contra a hidrelétrica de Itaipu; Movimento em Defesa da Amazônia[8], figuram alguns exemplos. No âmbito dessas e outras campanhas se destaca Movimento Arte e Pensamento Ecológico (Mape); Associação Paulista de Proteção Natural (APPN); Associação em Defesa da Fauna e da Flora; O Instituto Socioambiental (ISA).
Dentre as entidades citadas até aqui, há aquelas que se autodenominam como socioambientais, mas também ecologistas, conceitos estes e seus derivados que coexistem no vocabulário brasileiro da década de 1980, sinalizando para reinvindicações semelhantes apesar da denominação distinta[9]. Movimentos de cunho conservacionista, também fundados na década de 1980, como é o caso da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), SOS Mata Atlântica e Projeto Tamar. Ademais, organizações internacionais de enfoques semelhantes, fortaleceram seu trabalho no Brasil naquela época; é o caso do World Wide Fund for Nature (WWF) e The Nature Conservancy (TNC)[10].
Em 1992, a cidade do Rio de Janeiro sediou a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento– Rio 92 – o evento foi um marco para a institucionalização da problemática ambiental no Brasil[11], e representou a inserção daquele país na agenda ambiental global. A Rio 92 inspirou a fundação de novas organizações, avanços institucionais para aquelas já existentes e até mesmo articulações entre elas. Outro marco daquele ano, foi o início das atividades do Greenpeace no Brasil.
A causa socioambiental na agenda de outros movimentos sociais
Atualmente, observa-se no cenário brasileiro, a continuidade de muitos movimentos ambientais criados entre as décadas 1970 e 1990, eles lograram complexos processos de profissionalização e institucionalização. Nota-se ainda que, movimentos sociais não essencialmente ambientalistas, conquistaram significativa atuação nesse âmbito nas últimas décadas. É o caso do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que especifica nas suas lutas um projeto energético popular; a não mercantilização da água e associa a construção das barragens no Brasil às violações dos direitos humanos. Também, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que desde 2000 adota a Agroecologia como base para realização do próposito maior da reforma agrária. É enfatizando que a agroecologia representa uma alternativa ao modelo agroexportador, dependente de complexos agroindustriais oligopolizados, preconizados pelo agronegócio[12].
Desafios para a sustentabilidade e a justiça ambiental
Este breve histórico, evidencia a importância do momento da redemocratização para articulação de movimentos socioambientais. Contudo, a expectativa de um período propício à livre manifestação de ideias, se frustrou expressivamente, em razão do assassinato de Chico Mendes, liderança da “Aliança dos Povos da Floresta”, em dezembro de 1988[13]. O evento sinalizava que havia um longo caminho a percorrer, rumo a consolidação de instituições capazes de salvaguardar o estado democrático de direito, necessário para a sobrevivência de todo e qualquer ativismo. O Brasil segue com altíssimos índices de assassinatos de militantes ambientalistas[14]. O ano de 2022 foi marcado pelo assassinato dos o indigenista Bruno Pereira, servidor licenciado da FUNAI (Fundação Nacional do Índio) e o jornalista britânico Dom Phillips que colaborava com diversos jornais, principalmente The Guardian, e estava escrevendo um livro, que ficou inacabado, cujo o título era o emblemático imperativo "Como Salvar a Amazônia”. [15]
Referências Bibliográficas
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Lima, Gustavo Ferreira da Costa (2009): Educação ambiental crítica: do socioambientalismo às sociedades sustentáveis. In: Educ. Pesqui. 35 (1), S. 145–163. DOI: 10.1590/S1517-97022009000100010.
Muggah, Robert (2022). “Opinion: A Violent Tragedy Foretold in the Amazon.” NPR, 17.06. 2022. Online verfügbar unter https://www.npr.org/2022/06/17/1105852069/opinion-dom-phillips-bruno-pereira-brazil-amazon-environmental-crime.
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[1] José Bonifácio de Andrada e Silva, Representação à Assembleia Constituinte e Legislativa do império do Brasil sobre a escravatura, 1823. Citado por: (Pádua 2002).
[2] “Em termos práticos, os “conservacionistas” propunham o uso dos elementos naturais com responsabilidade para as gerações futuras; já os preservacionistas sugeriam a reserva de áreas – de preferência as mais belas – para a constituição de parques naturais sem a presença humana.” (Pereira 2018, 342)
[3] (Pádua 2002)
[4] (Alonso; Costa e Maciel 2007, 157)
[5] (Tatagiba; Abers e Kunrath Silva 2018)
[6] (Santilli 2005, 12-13)
[7](Pierro 2020); (Viola, 1987, 9); (Pereira 2018, 350-351)
[8](Alonso; Costa e Maciel 2007, 158-159); (Souza 2018, 102)
[9] Atualmente o conceito ecológico parece ter prevalecido para enunciar entidades, ao passo que socioambiental, é atualmente mais empregado, para adjetivar situações “impactos socioambientais”; “soluções socioambientais”, “políticas públicas socioambientais” etc.
[10] (Souza 2018, 102)
[11] (Jacobi 2005, 236)
[12] (Borsatto e Carmo 2013)
[13] (Souza, 2018, 107)
[14] “O Brasil foi o país que mais matou defensores do meio ambiente e líderes comunitários no mundo na última década. Segundo os dados da ONG Global Witness, a perseguição a ativistas levou à morte de 1.733 pessoas no mundo. Do total, 20% ocorreram o Brasil.” (Albuquerque 2022); (Hines 2022)
[15] (Deutsche Welle 2022); (Davies e Davies, 2022); (Muggah, 2022)