Uma barricada de Utopias com flechadas de esperanças

| by praktikum@kooperation-brasilien.org

Tainá Marajoara*

O Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá Amazônia Viva nasce com a determinação da natureza em florescer e a persistência ancestral de existir nestes críticos tempos das sementes que são programadas para não se multiplicar. Fundado em 2009, tem como ponto de partida o projeto CATA – Cultura Alimentar Tradicional Amazônica, qual percorreu mais de 50mil km por estradas e incontáveis horas de barcos realizando uma contracartografia sobre a cultura alimentar amazônica no estado do Pará, o estado que mais devasta a Amazônia, é recordista em grilagem de terras, tráfico humano e em trabalho em situação análoga à escravidão, e foi recentemente considerado o território mais perigoso do planeta para ambientalistas e lideranças sociais.

Junto a todas essas ameaças, após o golpe para a queda da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e a ascensão do bolsonarismo, chega a COVID-19 e com ela o recrudescimento e a estética fascista assolando o Brasil, acirrando ainda mais os quadros de conflitos agrários, destruição de ecossistemas e direitos e recolocando o Brasil no mapa da fome, do qual havia saído na era Lula da Silva.

Na conjuntura fascista tropical as culturas e a ciência são imediatamente atacadas, o racismo ganha dimensões assustadoras e os impérios agroalimentares massacram a população com violências políticas e simbólicas para garantirem seus lucros a partir da vulnerabilidade imposta pela concentração de renda, terra e poder que estas corporações e lobistas dominam. Por exemplo, a transformação do Brasil no maior consumidor mundial de agrotóxicos e um dos maiores emissores de dióxido de carbono.

Por acreditar que “muy otros” futuros são possíveis, levantamos todos os dias nossa barricada de utopias transmutada em ponto de cultura, que não apenas resiste mas também avança. A reorganização dos nossos trabalhos durante a COVID-19 é uma dessas ofensivas.

Chegou a Pandemia. Fechamos as portas. A equipe tem que estar em segurança mas a casa vai quebrar. Como garantir a sobrevida de mais de 500 famílias que tem suas rendas vinculadas as atividades do Iacitatá ao produzir na suas terras? Reunimos os parceiros, compartilhamos as angústias, e de uma ponta, os agricultores e extrativistas e na outra consumidores agroecológicos. A primeira decisão foi dar calote em todas as corporações! Com os decretos de continuidade dos serviços deixamos de pagar contas de água, luz, banco, cartões de crédito e tudo o mais que fosse das corporações para que pudéssemos honrar os compromissos com as comunidades que abasteciam a cozinha do Iacitatá, movimentando um serviço de alimentação para mais de mil pessoas por mês.

A cozinha do Iacitatá é a única do Brasil 100% sem alimentos vindos da indústria de alimentos mesmo sendo orgânicos. Só entram na cozinha do Iacitatá alimentos com origem conhecida, de territórios de uso coletivo e unidades de conservação e ocupação pela reforma agrária. Apenas produções sem agrotóxicos e outros químicos e com sementes crioulas e em condições justas de trabalho e respeito ao protagonismo feminino. Desse modo, chegamos a atender mais de 4mil pratos em um único evento, contradizendo as narrativas hegemônicas provando que é possível sim uma cozinha saborosa, justa e ancestral produzida em grande quantidade e pensada para manter os povos vivos, e assim o planeta vivo.

Todas as quintas e sábados realizávamos um “encontro-feira” na calçada do Iacitatá com agricultores, mestres e guardiãs de cultura, cozinheiros e consumidores em parceria com o GRUCA – Grupo para Consumo Agroecológico que atua na facilitação entre produtores e consumidores e faz a entrega dos “paneiros cabanos”, uma cesta de produtos agroecológicos e da cultura alimentar acordada entre produtor e consumidor.

Veio a pandemia, e a parceria se aprofundou, se irmanou. O paneiro cresceu! As produções dos diversos povos que participam das atividades da casa como Wai-wai, Tikuna e Marajoara, e de quilombolas também foram somadas aos paneiros. Além dos horti-frutti também foram disponibilizados para a entrega todo o catálogo do ponto de cultura, então é possível hoje pedir jambu, queijo do Marajó, livro do Ailton Krenak, moda indígena, obras de arte, literatura quilombola, artesanatos e biojóias e tudo o que mais tiver disponível. É compromisso do Iacitatá a manutenção da renda destas famílias.

O movimento nas redes sociais se intensificou e as dinâmicas das postagens passaram a atender com mais frequência pedidos de informações sobre fitoterápicos, alimentos para manter a imunidade e como se engajar na luta pela alimentação, cultura e soberania alimentar. Nesse caso, o primeiro de todos os passos é lutar pelo impeachment do Bolsonaro.

Ao honrar os pagamentos aos agricultores e trabalhadores da casa, o Ponto de Cultura se descapitalizou e se tornou inviável o funcionamento da casa. As entregas seriam encerradas e as portas iam mesmo fechar. Foi então que parceiros como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, fez uma doação de mais de 2 toneladas de alimentos para abastecer a cozinha, pois nem mesmo açúcar e arroz já havia no ponto de cultura. Dano um respiro de esperança em meio ao caos, tristeza e desespero.

Ao longo de toda a pandemia, o governo federal não apresenta nenhuma ação de apoio à agricultura familiar agroecológica e nem de apoio a cultura, e nega o auxílio emergencial para agricultores, pescadores e extrativistas. Mais uma vez, os movimentos sociais se levantam, e o Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá entra na luta pela aprovação da lei de emergência cultural, uma iniciativa da sociedade civil junto as parlamentares Jandira Feghali e Benedita da Silva, a Lei Aldir Blanc de Emergência Cultural com contribuição definitiva no processo para inclusão da cultura alimentar mediante a colaboração com o Art 8º , Item XXIV – Espaços e Centros de Cultura Alimentar, de base comunitária agroecológica, de povos originários e povos e comunidades tradicionais e de culturas populares. Deste modo, os guardiões e guardiãs que haviam sido excluídos no auxílio emergencial se tornam beneficiários e vale pontos de cultura, associações, barracões de sementes e outros espaços que também não tinham possibilidade de acesso a crédito ou financiamentos emergenciais para amenizar os impactos econômicos causados pela pandemia.

O Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá é uma iniciativa de base comunitária localizada na Praça Frei Caetano Brandão, em Belém/PA. É o único espaço anticolonialista na Praça que hoje ocupa o lugar onde foi feita a fundação da cidade de Belém. O espaço cultural é o único em um quadrilátero de eclesiástico, punitivista e militarizado, onde anteriormente os prédios chegaram a abrigar a sede do DOPS, durante a ditadura militar no Brasil.

O Iacitatá desencrava todos os dias a Maery ( o nome do território tupinambá, no qual Belém se estabeleceu), a partir de um trabalho em rede e coletivo em parceria com mais de 50 comunidades das diversas regiões da Amazônia e do Brasil. Toda a cozinha é feita com alimentos livre de venenos, transgênicos, grileiros e pistolagem. Sim, estamos quebrados, com grandes dívidas acumuladas, precisamos de doações para manter as ações de formação em cultura alimentar, os projetos de salvaguarda de alimentos e o ativismo.

E, avançamos com a força dos encantados e cozinhamos com esperanças como os velhos pássaros semeadores que espalham sementes até seu último suspiro. É pelos povos vivos, pela Amazônia Viva, pela vida que corre nos fecundos sonhos do bem viver! 

*Tainá Marajoara é pensadora indígena, curadora, cozinheira, realizadora cultural e fundadora do Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá em Belém do Pará.