Sociobiodiversidade: ameaças, lutas e perspectivas
Aderval Costa Filho*
A composição étnica, racial e cultural do Brasil, bem como a diversidade biológica dos seus biomas e ecossistemas têm resultado numa variedade considerável de produtos agroalimentares, além da conservação de recursos naturais, conhecimentos tradicionais e modos de vida de comunidades camponesas, povos indígenas, comunidades quilombolas e comunidades tradicionais.
Tais grupos têm seus direitos reconhecidos por Convenções Internacionais de que o Brasil é parte[1], pela Constituição Federal de 1988[2] e por uma série de dispositivos infraconstitucionais federais[3] e estaduais. Esses direitos envolvem o reconhecimento identitário, o acesso à terra/território, à água, à alimentação adequada, aos recursos naturais e saberes associados, dentre outros.
Não obstante todos os direitos assegurados, esses grupos têm vivenciado inúmeros conflitos, decorrentes dos projetos de desenvolvimento, invasão de seus territórios e comprometimento dos recursos ambientais de que se utilizam (COSTA FILHO, 2015, p. 80-81)[4]. Esse quadro tem se agravado consideravelmente nos últimos anos, com o cenário político de retrocesso democrático (revogação de marcos legais, extinção de instâncias de controle social, desmonte de aparatos protetivos do Estado, supressão de programas sociais, cortes orçamentários), em sintonia com interesses e projetos hegemônicos.
Considero a categoria “povos e comunidades tradicionais” no Brasil, sobretudo os do meio rural, como formas contemporâneas de campesinato, etnicamente marcadas. Nesse sentido, sua agricultura camponesa tradicional pressupõe relação entre propriedade, trabalho e família, particularidades quanto aos objetivos sociais da atividade econômica, experiências de sociabilidade, inserção na sociedade envolvente (WANDERLEY, 1999)[5].
Destacam-se famílias pluriativas, que se caracterizam pela combinação da atividade agrícola com outras ocupações, como estratégia familiar de melhoria das condições de vida e de permanência no campo (CARNEIRO, 2008, p. 21)[6]; bem como pela reivindicação de alimentação mais saudável conjugada aos movimentos de recuperação do meio ambiente e produção agroecológica de pequena escala. O que se coaduna com o “caráter multifuncional” da agricultura, que associa práticas agrícolas a estratégias de conservação dos recursos naturais, mitigação de mudanças climáticas, valores ligados à sociabilidade, identidade, dentre outros (WILSON, 2010)[7].
Em todas essas perspectivas ressalta-se a importância estrutural ou simbólica da terra, entendida, não como um objeto ou mercadoria, mas como expressão de uma moralidade (WOORTMANN K., 1990, p. 12)[8]. Não se trata, portanto, de terra no sentido estrito, mas de território ou territórios de parentelas.
A título de ilustração, ao analisarmos o Sistema Agrícola Tradicional da Serra do Espinhaço Meridional, dos Apanhadores de Flores Sempre Vivas e Comunidades Quilombolas (MONTEIRO, FAVERO, COSTA FILHO, SOLDATI & TEIXEIRA, 2019)[9], identificamos que a segurança alimentar das famílias é viabilizada pelo conjunto de produtos que envolve cultivo-criação-coleta, e em alguns casos a pesca nos rios Jequitaí e Jequitinhonha.
No que diz respeito aos usos da terra, com tamanhos que variam de 1 a 30 hectares, as famílias conjugam terras das unidades familiares (localizadas nas proximidades das comunidades) com as áreas de uso comum (onde estão os campos de coleta e áreas de solta ou criação de animais de grande porte) para realizar sua produção e garantir sua reprodução social.
O sistema agrícola em pauta envolve comunidades localizadas nos municípios de Diamantina, Buenópolis e Presidente Kubitscheck e altitudes que variam de 600 a 1400 metros. São utilizadas “manchas” de solos com fertilidade natural mais elevada para cultivar, criar animais de grande porte em manejo extensivo, e coletar/manejar a flora, respeitando ciclos naturais, otimizando fluxos energéticos e de nutrientes.
Na época das águas (entre novembro e março) ocorrem as atividades de cultivos das roças e quintais e criação dos animais de grande porte nas pastagens cultivadas nas proximidades das casas. Na época da seca (entre abril e outubro), as atividades se concentram nas cotas elevadas, nas terras de uso comum, para criação do gado bovino e coleta de plantas ornamentais.
Nesse período de coleta de flores as famílias permanecerem nas terras altas para a coleta das flores, manejo do gado rústico e animais de carga, e se alojam nas lapas (grutas nas formações rochosas) ou em “ranchos”. A presença de frutíferas ao redor das lapas e mesmo de pequenos quintais ao redor dos ranchos compõem a rica agrobiodiversidade desses grupos.
As espécies cultivadas se desenvolvem em solos enriquecidos pela ação antrópica: seja nos quintais ou nas roças de toco; na seleção contínua de variedades; na circulação de germoplasma; no uso na alimentação e práticas culturais (medicinais, condimentares, religiosas, festivas, etc.). Ocorre uso e gestão compartilhada de recursos entre as famílias e comunidades, vital na manutenção das espécies e ampla reciprocidade.
Cada nova família que se forma, instala-se na comunidade (família neolocal) e leva sementes e mudas para começar seu quintal (incluindo animais) e sua roça (“sementes de geração”, no dizer dos comunitários). É também comum a troca de bens e insumos entre pais e filhos, ou mesmo o cultivo conjunto de roças entre mães e filhas, ou entre irmãs, em algumas localidades; há prevalência e protagonismo social e político das mulheres em todo o sistema.
Outra dinâmica importante de fluxos gênicos diz respeito às travessias e transumância que ocorrem na serra. Essa dinâmica provoca a troca de insumos, bens e serviços entre as três grandes unidades de paisagem (sertão-serra-margens do rio Jequitinhonha) nos encontros na época de coleta de flores e manejo do gado bovino, assim como em enlaces matrimoniais e festejos.
Dessa forma, tem havido uma domesticação da paisagem na região, com remoção de espécies não úteis, proteção de espécies úteis, atração de animais dispersores de sementes, transporte intencional ou não de plantas úteis, dispersão de sementes decorrente dos deslocamentos com flores e frutos coletados, seleção fenotípica, manejo do fogo para aumento da fertilidade do solo, plantio de espécies e enriquecimento do solo.
Os(as) apanhadores(as) de flores sempre vivas lutam pela recategorização do Parque Nacional das Sempre Vivas[10], que está sobreposto quase integralmente a vários dos seus territórios tradicionais. Também estão organizados(as) na Comissão em Defesa das Comunidades Extrativistas Apanhadoras de Flores Sempre-vivas – CODECEX, fazendo parte também da Rede de Agrobiodiversidade do Semiárido Mineiro, da Articulação Rosalino de Povos e Comunidades Tradicionais do norte de Minas Gerais, além de ter representação na Comissão Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais e no Conselho Nacional de Comunidades Tradicionais.
Em junho de 2019, por ocasião do festival das comunidades apanhadoras, houve o lançamento de dois Protocolos Comunitários de Consulta Prévia[11] e aos 11 de março de 2020, o Sistema de Agricultura Tradicional da Serra do Espinhaço, também conhecido como de “Apanhadores de Flores Sempre-Vivas”, recebeu o reconhecimento internacional pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), como Sistema Importante do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM). Essas foram algumas das estratégias acionadas pelas comunidades para garantia dos seus direitos territoriais e identitários, na reprodução dos seus modos de vida.
*Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, pesquisador do GESTA/UFMG, membro do Comitê Quilombos da ABA; Pós-doutorado no CIRAD/Montpellier-Fr (em curso).
Referências
[1] Como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (2003), a Convenção da Diversidade Biológica (1998), a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2007), além das Declarações Universais das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) e a Declaração sobre os Direitos dos Camponeses e outras pessoas que trabalham nas áreas rurais (2018)
[2] Particularmente os artigos 231 e 232, do capítulo VII, que tratam dos direitos territoriais e políticos dos povos indígenas, o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (relativo à regularização fundiária de territórios das comunidades dos quilombos), os artigos 215 e 216, que determinam respectivamente a proteção das manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório brasileiro.
[3] Ressalta-se o Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
[4] COSTA FILHO, A. “Os Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil” In: Os Povos e Comunidades Tradicionais e o Ano Internacional da Agricultura Familiar.1ª ed. Brasília-DF: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2015, p. 77-98.
[5] WANDERLEY, Maria de Nazaré. Raízes históricas do campesinato brasileiro. In: João Carlos Tedesco (Org.). Agricultura Familiar: realidades e perspectivas. Passo Fundo: EDIUPF, 1999.
[6] CARNEIRO, M. J. “Rural” como categoria de pensamento. Ruris, Campinas. vol. 2, n. 1, 2008, p. 9-38.
[7] WILSON, Geoff. Multifunctional ‘quality’ and rural community resilience. Royal Geographical Society (with The Institute of British Geographers). NS 35, p. 364-381, 2010.
[8] WOORTMANN, Klaas. “Com parente não se Neguceia: o campesinato como ordem moral” In Anuário Antropológico/87. Brasília: EdUnB. 1990.
[9] MONTEIRO, F. T.; FAVERO, C.; COSTA FILHO, A.; OLIVEIRA, M. N. S.; SOLDATI, G. T.; TEIXEIRA, R. D. B. “Sistema Agrícola Tradicional da Serra do Espinhaço Meridional, MG: transumância, biodiversidade e cultura nas paisagens manejadas pelos(as) apanhadores(as) de flores sempre-vivas”. In: Sistemas Agrícolas Tradicionais no Brasil.1ª ed. Brasília: Embrapa, 2019, p. 93-139.
[10] De Unidade de Proteção Integral para Unidade de Uso Sustentável, permitindo assim a coleta das flores e outros recursos naturais imprescindíveis à sua reprodução social.
[11] O Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada (PCPLI) é um documento respaldado juridicamente pela Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Sua adoção internacional ocorreu em 1989, tendo o texto sido aprovado pelo Parlamento do Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, tendo sido promulgado pela Presidência da República em 19 de abril de 2004 mediante o Decreto 5.051.