Manifestações contra Bolsonaro: quais devem ser nossas perspectivas?

| by praktikum@kooperation-brasilien.org

Lina Hamdan*

Sobretudo a partir de maio de 2021, vieram ocorrendo manifestações de rua contra o governo Bolsonaro em todos os estados do Brasil. Após mais de um ano de pandemia, a situação do país é crítica com centenas de milhares de mortes pela Covid, um cenário de fome, com cenas como filas para conseguir osso em Cuiabá, e desemprego crônico, inflação, com alimentos, combustível e eletricidade nas alturas, violência policial contra negros e pobres, além de uma agenda de ataques econômicos orquestrada não somente pelo governo, mas por diferentes alas do regime político brasileiro, com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), como as privatizações da Eletrobrás e dos Correios, os retrocessos sobre direitos trabalhistas desde a reforma trabalhista de 2017, a reforma da previdência de 2019 e diversas Medidas Provisórias anti trabalhadores que o governo aproveitou da pandemia para aplicar, além dos cortes de orçamento das Universidades e Institutos Federais. São os nefastos efeitos das reformas econômicas iniciadas em 2016 após o golpe institucional e aprofundadas no governo Bolsonaro e Mourão.

Os atos tiveram presença de amplos setores sociais, em especial da juventude e das comunidades universitárias, e seu pontapé esteve relacionado aos cortes orçamentários às universidades públicas, que se viram em vias de fechar as portas em meio à pandemia. E rapidamente passaram a ter um caráter político mais estendido contra o governo nacional, alentado naquele momento pela expectativa na CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre a condução do governo em relação à pandemia, com os casos de corrupção que incluíam inúmeras denúncias a militares que compõem o governo.

As manifestações demonstraram uma disposição de luta de um setor que vinha sendo desmotivado a sair às ruas pela política do “fica em casa” alentada pela TV Globo, pelo STF e por governadores que, apesar de se colocarem como oposição nas pautas mais "ideológicas" reacionárias do bolsonarismo, são claramente sempre a favor das pautas econômicas do governo. Mas essa política também foi alentada pelas direções das organizações de massas, como centrais sindicais e entidades estudantis, que ficaram completamente paralisadas durante a pandemia. O que no discurso é contra o negacionismo de Bolsonaro, na verdade foi uma armadilha para conter explosões sociais no país, para separar as comunidades universitárias e setores do funcionalismo público, como professores, da gigantesca maioria da classe trabalhadora que seguiu trabalhando durante toda a pandemia. O objetivo: conduzir o descontentamento com o governo para vias institucionais (e não ter na principal economia da América Latina as instabilidades sociais que tiveram em países vizinhos como a Colômbia), sobretudo pela via da CPI que serviu para escamotear o papel que os próprios STF, governadores,​​ congresso etc, também cumpriram na construção da atual situação que se encontra o país. Parte da oposição que se coloca como de esquerda aumentou a expectativa na CPI para encaminhar o impeachment, que levaria o General Mourão, saudoso da​​ ditadura militar, ao poder, ou para "sangrar" Bolsonaro para melhor localizar Lula (PT) para as eleições de 2022. Enquanto isso, Lula, que diz perdoar os que o prenderam arbitrariamente em 2018, procura se aliar com os mesmos que estiveram por trás do golpe de 2016, como José Sarney (MDB) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), símbolos da velha política.

Por isso, a potência que as massas nas ruas apresentam, dispostas a lutar, também enfrenta contradições. Chamados por organizações de esquerda e pela União Nacional dos Estudantes (UNE), os atos ocorreram aos sábados, sem ter uma mobilização com assembleias de base em locais de trabalho e estudo para que possamos debater os rumos e o conteúdo da nossa luta. Também não tinham um discurso de unidade entre estudantes e trabalhadores, numa situação que a juventude se vê sem futuro e os trabalhadores com receio de perder o emprego. Pelo contrário, em seus objetivos eleitorais, as centrais sindicais e a UNE, que são majoritariamente dirigidas pelo PT e pelo PCdoB, dividiam os dias, chegando a chamar dias de paralisação de trabalhadores (que não ocorriam de fato) poucos dias antes ou depois das mobilizações da juventude.

A situação reacionária no país se mantém, com o bolsonarismo indo e vindo com sua retórica golpista. Porém, as manifestações da juventude e de setores "progressistas" contra Bolsonaro, assim como alguns alguns processos moleculares de greves de trabalhadores desde o começo do ano são pontos de apoio que temos que pensar como unificar, pois devemos apostar numa saída para a crise política, econômica e social. Vimos ao longo do ano a greve de trabalhadores da construção civil da construtora MRV, greve dos metroviários e ferroviários de São Paulo, a luta dos trabalhadores da Ford, dos rodoviários da Carris em Porto Alegre, de metalúrgicos na Sae Towers em Betim, de terceirizadas da LG, de trabalhadores da Rede TV. Um destaque particular deve ser dado à impressionante luta dos povos indígenas contra a votação do Marco Temporal pelo STF. Infelizmente, essas lutas seguem isoladas e desconectadas entre si de uma luta contra Bolsonaro e Mourão e seu governo de militares e seus atentos golpistas. 

Em nenhum momento essas greves tiveram poder de alterar a situação reacionária que nós encontramos no Brasil, mas do ponto de vista das organizações da esquerda era decisivo dar toda atenção a elas e ligá-las às manifestações contrárias ao governo, unificando as pautas. Ao final de julho, um representante da Frente Povo Sem Medo, uma das frentes que organizou as manifestações de sábado contra Bolsonaro, afirmou que estas estavam "perdendo tração". Não à toa. Após três meses de atos espaçados sem paralisação da classe trabalhadora, sem afetar os grandes empresários, chamando a direita como Dória (PSDB) para os atos, dando nenhuma perspectiva de que o Bolsonaro de fato caia, com as próprias organizações e suas figuras defendendo que as manifestações são para pressionar o presidente do reacionário Congresso pelo impeachment vai ficando claro que são manifestações para “fazer sangrar o governo” e não para derrubá-lo de fato. 

E mesmo estando diminuindo, as imagens de milhares na rua contra o governo Brasil afora, mostra que ainda tem muita disposição de luta. E os trabalhadores que saem em greve por direitos mostram que a classe trabalhadora brasileira não está derrotada. Exemplos e motivos não faltam para canalizar toda a angústia e tristeza popular em revolta e organização urgentes, com um plano de lutas claro contra Bolsonaro, Mourão e cada ator desse regime degradado.

Contra o avanço da extrema-direita, mas também da precarização da vida, para que a crise econômica não seja paga pelos trabalhadores, precisamos confiar apenas nas forças da classe trabalhadora organizada de maneira independente de diferentes setores do empresariado e seus representantes políticos.

A força social organizada dos trabalhadores, junto à energia da juventude, é o que pode colocar uma perspectiva diferentes para os rumos do país, por exemplo, impondo pela luta uma Assembleia Constituinte que fosse livre, sem predeterminantes de suas funções e que todos pudessem se candidatar como representantes, e soberana, sendo de fato a correspondência máxima do princípio de soberania popular, se sobrepondo a todos os demais poderes, podendo revogar todas as reformas e os ajustes, definindo sobre todos os problemas sociais, econômicos e políticos do país, como a necessária reforma agrária e o direito à autodeterminação dos indígenas. 

A esquerda no Brasil precisa se colocar como um contrapeso contra a fragmentação das lutas, que unificadas podem se mirar contra Bolsonaro, Mourão e todos os militares que se assomam na política brasileira. É preciso defender estratégias que estejam a serviço de combater a paralisia e conduzir a classe trabalhadora a confiar nas suas próprias forças mobilizadas, combatendo a desmoralização construída na nossa classe, após inúmeras derrotas em batalhas não dadas, como por exemplo a aprovação da reforma da previdência. As nossas miras precisam ser pensadas para construir uma ponte que mire contra a ganância e a miséria capitalistas.

*Lina Hamdan é estudante de Artes Visuais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e militante do Movimento Revolucionário de Trabalhadores, organização que constrói a seção brasileira da rede internacional de jornais Esquerda Diário.