Desigualdade e fome no Brasil da pandemia

| by praktikum@kooperation-brasilien.org

Valéria Burity[1], Mariana Levy[2], Paulo Spínola[3]

A pandemia, além de seus efeitos sanitários, tem e terá graves impactos sociais e econômicos. Segundo a Oxfam (2021), a Covid-19 afetou de forma díspar grupos já afetados por uma profunda desigualdade“[as] mulheres, a população negra e integrantes de grupos étnicos minoritários são os que mais sofrem”. A Oxfam também destaca que os mil maiores bilionários do mundo recuperaram as perdas da pandemia em apenas nove meses, enquanto os mais pobres levarão mais de uma década para voltar ao nível em que estavam antes da crise. .

O olhar sobre essa crise e seus efeitos, contudo, não pode ser meramente conjuntural, já que esta não pode ser dissociada de outras crises que a antecederam, provocadas pelo neoliberalismo, como a econômica e a ambiental. O capitalismo neoliberal gera crises às quais responde com a sua própria lógica, garantindo que a economia para poucos, bem poucos mesmo, prevaleça sobre a vida, os direitos, a democracia e a natureza.

Em resposta à atual crise econômica, por exemplo, muitos países, especialmente aqueles em desenvolvimento, adotaram medidas de austeridade, marcadas por cortes de gastos públicos e reformas dos regimes tributário, previdenciário e trabalhista. Essas medidas tiveram um forte impacto na garantia ao direito ao trabalho, em programas e serviços fundamentais para acesso à saúde, à renda e à produção de alimentos, dentre outros serviços e direitos que fizeram falta no enfrentamento à pandemia da Covid-19 (DE SCHUTTER, 2020).

No Brasil, um dos países que mais concentram renda no 1% da população (que detém 49,6% da riqueza total, segundo o relatório Riqueza Global[4]),  o receituário neoliberal tem gerado, desde o golpe de 2016, desemprego, flexibilização de direitos, desmonte de instituições públicas, de mecanismos de participação e de políticas de seguridade social e segurança alimentar. Nas florestas, no campo e nas cidades são os grupos historicamente vilipendiados que deixam de acessar direitos básicos, como o direito à alimentação.

O Brasil apresentou no início de 2021 taxa recorde de desemprego (14,7%), o que representa aproximadamente 15 milhões de pessoas sem fonte segura de renda. Em um ano de pandemia, enquanto houve a redução de 2 milhões de empregos formais, o número de trabalhadores sem carteira assinada aumentou em 586 mil. Mesmo diante desse cenário, o Governo Bolsonaro e o Congresso Nacional decidiram insistir na aposta da austeridade desenfreada. Em agosto deste ano, foi aprovada, na Câmara dos Deputados, a Medida Provisória 1.045, chamada de minirreforma trabalhista, que autoriza a criação de trabalhos precários, contratação de jovens sem direitos trabalhistas, acordos de redução de jornada e salário e suspensão temporária dos contratos de trabalho.

O desemprego e o corte de programas sociais levaram a um processo de acelerado empobrecimento da população brasileira. Em 2019, a extrema pobreza cresceu 13,5%, chegando a 13 milhões de pessoas que vivem com até R$ 151 por mês. A pobreza atinge 24,7% da população, o que equivale a mais de 52 milhões de pessoas com renda de até R$ 436 por mês (IBGE, 2020). Entre as pessoas abaixo das linhas de pobreza, 70% eram de cor preta ou parda, enquanto a população que se declarou com essa característica era de 56,3% da população total. A pobreza afetou ainda mais as mulheres pretas ou pardas: eram 28,7% da população, mas 39,8% dos extremamente pobres e 38,1% dos pobres (IBGE, 2020)[5].

O aumento da pobreza associado ao corte de programas essenciais para a redução da desigualdade agravaram a situação da fome no país.  O Inquérito sobre Insegurança Alimentar, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Segurança Alimentar, aponta que em 2020 mais da metade da população brasileira convivia com algum grau de insegurança alimentar (55,2%). Isso significa que 116,8 milhões de pessoas não tinham acesso pleno e permanente a alimentos. Destes, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e  19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave) (VIGISAN, 2021).

A pesquisa Vigisan mostra que a fome voltou aos patamares de 2004, crescendo 27,6% nos últimos dois anos[6]. É o que revela também a pesquisa realizada pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia, do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Livre de Berlim, em parceria com pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade Nacional de Brasília[7]. Em 2020, mais da metade dos domicílios brasileiros estavam em situação de insegurança alimentar (59,4%) e parte significativa diminuiu o consumo de alimentos saudáveis de forma regular e em quantidade e qualidade suficientes (GALINDO et al., 2021, p. 18).

A fome no Brasil, como se sabe, tem lugar, renda, idade, escolaridade, gênero e raça. O aumento da insegurança alimentar foi identificado principalmente nos domicílios situados nas regiões Norte (67,7%) e Nordeste (73,1%) e nas áreas rurais (75,2%). Os percentuais de insegurança alimentar se apresentam mais altos em domicílios com única/o responsável (66,3%), sendo ainda mais acentuada nos casos em que a responsável é mulher (73,8%) ou pessoa de raça ou cor parda (67,8%) e preta (66,8%). Também é maior nas residências habitadas por crianças de até 4 anos (70,6%) ou crianças e adolescentes de 5 a 17 anos (66,4%) (GALINDO et al., 2021, p. 39)[8].

As pesquisas recentes reafirmam também a associação entre segurança alimentar e segurança hídrica. A proporção de domicílios em situação de insegurança alimentar grave dobra quando não há disponibilidade adequada de água para a produção de alimentos, passando de 21,1% para 44,2% (VIGISAN, 2021, p. 43).

A tendência à diminuição do consumo de alimentos saudáveis, já identificada em estudos recentes, piorou durante a pandemia. Em 2020, o consumo de alimentos in natura e/ou minimamente processados diminuiu, sobretudo na população em situação de insegurança alimentar. A pesquisa do grupo “Alimento para justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia” mostra que em 2020, 44% das pessoas reduziram o consumo de carnes no Brasil; 41%, o consumo de frutas; 40,4%, o consumo de queijos e laticínios; e 36,8%, o de hortaliças e legumes. Nos domicílios em situação de insegurança alimentar, 85% reduziram o consumo de alimentos saudáveis (GALINDO et al. p. 37).

A desigualdade tornou-se social, e a política, explosiva, afirmou Ulrich Beck em A Metamorfose do Mundo. É afirmação que retrata o caos de um mundo que está à beira de um colapso ambiental e que permite que uns pouquíssimos indivíduos, basicamente homens brancos,  concentrem o máximo de riqueza e viajem pelo espaço enquanto quase metade da população mundial não pode arcar com uma alimentação minimamente saudável[9]. Esse processo de acumulação, que gera desigualdade, fome e insegurança alimentar, é espelho do afastamento social da sociedade ocidental, como observa Davi Kopenawa, xamã yanomami, ao falar sobre “os homens da mercadoria”, que acumulam riqueza enquanto espalham miséria:

Os brancos que criaram as mercadorias pensam que são espertos e valentes. Mas eles são avarentos e não cuidam dos que entre eles não têm nada. [...] Não querem nem saber daquelas pessoas miseráveis, embora elas façam parte do seu povo. [...] Nem olham para elas e, de longe, apenas as chamam de pobres. (p. 431)

 

[1] Secretária-Geral da FIAN Brasil.

[2] Advogada, cientista social e doutora em Direito pela USP.

[3] Assessor de direitos humanos da FIAN Brasil.

[4] Relatório lançado em 2021 pela empresa Credit Suisse, disponível no seguinte endereço: https://www.credit-suisse.com/about-us/en/reports-research/global-wealth-report.html

[5] Mais informações disponíveis no seguinte endereço eletrônico: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/29433-trabalho-renda-e-moradia-desigualdades-entre-brancos-e-pretos-ou-pardos-persistem-no-pais

[6] Os resultados estatísticos da pesquisa estão baseados na Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia) e são comparáveis com os dados da Pnad de 2004, 2009 e 2013 e da POF 2018 (VIGISAN, 2021, p. 9).

[7] Sobre a metodologia utilizada na pesquisa, vide Galindo et al. (2021, pp. 6-10).  Disponível em: https://refubium.fu-berlin.de/bitstream/handle/fub188/29813/WP_%234_final_version.pdf?sequence=2&isAllowed=y.

[8] A pesquisa Vigisan corrobora os dados sobre desigualdades alimentares no Brasil, em particular sobre os fatores relacionados às distintas regiões brasileiras, à renda, idade, gênero e raça. Vale destacar que as pesquisas Vigisan e do grupo Alimento para Justiça, apesar das distinções na composição da amostra e execução dos questionários, chegaram a resultados similares quanto à volta da fome no Brasil e suas dimensões interseccionais. Sobre a insegurança alimentar em residências com crianças e adolescentes, no mesmo sentido são os resultados da pesquisa elaborada pelo Unicef com apoio do Ibope (UNICEF; IBOPE, 2021, p. 25).

[9] O relatório O Estado da Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2021 aponta que, ainda em 2019, pouco mais de 3 bilhões de pessoas não tinham acesso econômico a uma dieta saudável.

Referências

DE SCHUTTER, Olivier. Looking back to look ahead: a rights-based approach to social protection in the post-COVID-19 economic recovery. ONU, set. 2020. Disponível em: https://www.ohchr.org/Documents/Issues/Poverty/covid19.pdf. Acesso em: jan. 2021.

GALINDO, Eryka; TEIXEIRA, Marco Antonio; ARAUJO, Melissa de; MOTTA, Renata; PESSOA, Milene; MENDES, Larissa; RENNÓ, Lúcio. Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil. Food for Justice Working Paper Series, Berlin, no. 4, 2021.

IBGE. Pesquisa de Orçamentos Familiares: 2017-2018: análise da segurança alimentar no Brasil. Brasília: IBGE, 2020.

REDE PENSSAN. VIGISAN. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no

Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil. REDE PENSSAN, 2021. Disponível em:

http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf. Acesso em: abr. 2021.

OXFAM. O vírus da desigualdade: unindo um mundo dilacerado pelo coronavírus por meio de uma economia justa, igualitária e sustentável. Oxfam, 2021. Disponível em: https://d335luupugsy2.cloudfront.net/cms%2Ffiles%2F115321%2F1611531366bp-the-inequality-virus-110122_PT_Final_ordenado.pdf. Acesso em: ago. 2021.