Mulheres do campo, da floresta e das águas na resistência ao conservadorismo no Brasil: experiências da Marcha das Margaridas

| by tilia.goetze@kooperation-brasilien.org

Renata Motta[1]

Marco Antonio Teixeira[2]

Eryka Galindo[3]

 

É olhando para as contradições, para a violência, a opressão e o racismo que vivenciamos, pelo simples fato de sermos mulheres, que construímos nossas formas de resistência, sendo a Marcha das Margaridas uma das suas mais fortes expressões (Contag, 2019, p. 11,) 

 

A Marcha das Margaridas foi o maior protesto de rua no Brasil em 2019 e a ação liderada pelas mulheres do campo, da floresta e das águas se tornou uma das principais forças de mobilização contra o conservadorismo no Brasil. Seu nome é um tributo a Margarida Maria Alves, líder sindical do estado da Paraíba, no Nordeste do Brasil, assassinada por sua luta pelos direitos da classe trabalhadora, em 1983. A primeira edição da Marcha aconteceu em 2000 e, desde 2003, ocorre a cada quatro anos. De acordo com a comissão organizadora, é a maior ação de mulheres do campo da América Latina, mobilizando entre 20 e 100 mil mulheres em Brasília, capital do país. Dessa forma, a mobilização de 2019 é parte de uma trajetória mais ampla de organização política das mulheres sindicalistas rurais. São mais de 20 anos da Marcha e mais de 40 anos de organização política, período no qual as mulheres vem lutando para conquistar espaços de poder no interior do movimento sindical e a ampliação de direitos para as mulheres[4].

As tendências conservadoras que caracterizam a recente guinada à direita no cenário global têm como importantes marcos no Brasil o impeachment – neste caso, um golpe parlamentar travestido de legalidade -  que destituiu a presidenta Rousseff e levou o então vice-presidente Temer ao poder (2016) e a eleição de Bolsonaro (2018) para a presidência da república. A ascensão das direitas ocorre no país combinando uma agenda conservadora  de costumes, por meio de pautas que negam direitos a minorias, como mulheres, populações negras e LGBTQI+ - incluindo discursos de ódio da extrema direita-, e uma agenda econômica neoliberal que, sob justificativa da promoção da responsabilidade fiscal, inviabiliza políticas de proteção e bem estar social construídas desde a redemocratização do país. O crescimento das direitas acontece em um contexto de crise econômica, iniciada em 2015 e marcada pelo crescimento da taxa de desemprego, redução da renda média da população mais pobre e redução da taxa de investimento em políticas de combate às desigualdades, a exemplo do Bolsa Família. Segundo a Pesquisa de Orçamento Familiar 2017-2018, 84,9 milhões de brasileiras(os) viviam algum grau de insegurança alimentar, seja ela leve, moderada ou grave[5].

É neste cenário que as mulheres do campo, da floresta e das águas vão para as ruas de Brasília em 2019. Neste artigo, apontamos três dimensões centrais nas quais se pode identificar a Marcha das Margaridas como expressão de resistência à ascensão das direitas: seu sujeito político, seu processo organizativo e a sua política de alianças.

O sujeito político da Marcha das Margaridas são as mulheres do campo, da floresta e das águas, reunindo uma diversidade de sujeitos que participam da mobilização, como agricultoras familiares, quilombolas, extrativistas, quebradeiras de coco, entre outras. Esse sujeito político é resultado de um processo de construção de um “nós” provisório e contingente (Aguiar, 2016), que se conforma, principalmente, na intersecção de classe, gênero e ruralidade (Motta e Teixeira, no prelo). Dessa forma, as “trabalhadoras rurais”, em 2000 e 2003, passaram a se identificar como “mulheres do campo e da floresta”, em 2007, e “mulheres do campo, da floresta e das águas”, a partir de 2015. A demonstração de força via mobilização de mulheres de todo o país sob a liderança das mulheres do campo, da floresta e das águas é um ato de resistência ao projeto conservador porque seu sujeito político simboliza uma resistência ao agronegócio, um dos principais pilares do governo Bolsonaro, ao patriarcado e ao racismo que estruturam o projeto conservador. Ao explicar por que lutam, as mulheres afirmam: “Contra o sistema patriarcal, racista, capitalista” (Contag, 2019, p. 11).

A Marcha das Margaridas é um processo, muito além do protesto de rua que acontece a cada quatro anos. O encontro para marchar em Brasília, em agosto, é a culminação de um longo processo organizativo que envolve organização política, mobilização e formação nas escalas locais, estaduais e regionais. O lançamento da Marcha das Margaridas 2019 aconteceu no dia 8 de março, Dia Internacional de Luta das Mulheres, em 2018. Seguiram-se atividades descentralizadas nos territórios: caravanas estaduais, cursos nacionais e estaduais de formação de lideranças, atos públicos, ações de mobilização nas comunidades e encontros regionais das Margaridas. De acordo com dados do survey que realizamos durante a Marcha em 2019, 61,14% das ativistas da Marcha participaram de cursos, oficinas ou reunião de debate político preparatórios; 48,69% afirmaram ter tido a oportunidade de debater os cadernos de debate (produzidos para as atividades de formação e mobilização) com antecedência; e 47,38% se envolveram em atividades de arrecadação de fundos, tais como rifas, festas, venda de produtos etc. (Teixeira et. al., 2020). Diferente de outras mobilizações que se caracterizam pela espontaneidade, a Marcha das Margaridas implica um processo de construção política que envolve suas participantes nas dimensões da organização, mobilização e formação. Dessa forma, o processo organizativo da mobilização representa uma resistência ao conservadorismo político, que se esforça por limitar os espaços de participação política, sobretudo aos movimentos sociais populares.

Um terceiro elemento  é a política de alianças da Marcha. A coordenação geral fica a cargo da Comissão Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais, do movimento sindical e a coordenação ampliada inclui outros movimentos sindicais, sociais, feministas, de mulheres e organizações internacionais. Em 2019, 16 organizações parceiras compuseram a organização da Marcha. Em um contexto no qual movimentos populares têm sido criminalizados pelas forças políticas no poder, partidos políticos de esquerda, movimentos sociais, sindicatos, entre outros atores do campo popular, têm se pronunciado pela importância de se estabelecer alianças para se contrapor à ascensão do conservadorismo. Contudo, muitos desafios são encontrados nessa busca por construir coalizões. A Marcha das Margaridas constrói alianças entre diversos movimentos e organizações desde a sua origem e tem nisso uma das suas principais características (Aguiar, 2016; Teixeira e Motta, 2020; Motta e Teixeira, no prelo). Dessa forma, as alianças construídas pela Marcha fortalecem não apenas o seu poder político, como têm um caráter pedagógico que pode vir a influenciar outras ações e alianças, potencialmente fortalecendo resistências ao conservadorismo.

A Marcha das Margaridas articula três dimensões que desafiam a lógica conservadora vigente ao colocar como protagonistas políticas sujeitos subalternizados (Spivak, 1994), ao propor maneiras de fazer política com participação coletiva, envolvendo diversos sujeitos políticos em diferentes escalas e, ao estabelecer alianças com entidades diversas na construção de um diálogo que busca a construção de alianças diante das diferenças.            

 

Referências

AGUIAR, V. V. P. Mulheres rurais, movimento social e participação: reflexões a partir da Marcha das Margaridas. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 15, edição spe., 2016.

CONTAG. Plataforma Política Marcha das Margaridas 2019. Por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violência. Brasília: Contag, 2019a.

MOREIRA, S. L. D. S. A contribuição da Marcha das Margaridas na construção das políticas públicas de agroecologia no Brasil. Dissertação (Mestrado – Mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural) – Universidade de Brasília, 2019.

MOTTA, R.; TEIXEIRA, M. A. (no prelo). Allowing rural difference to make a difference: the Brazilian Marcha das Margaridas. In: Dominique Masson, Janet Conway and Pascale Dufour. Transnational objects, activist solidarities, feminist analytics. Brown University, Ontario, Canada.

PIMENTA, S. D. C. Participação, poder e democracia: mulheres trabalhadoras no sindicalismo rural. In: SILVA, E. M.; SOARES, L. B. et al. (Org.). Políticas públicas e formas societárias de participação. Belo Horizonte: Fafich/UFMG, 2013, p. 155-184.

SPIVAK, G. C. Can the subaltern speak? In: G. C. Spivak. Colonial discourse and post-colonial theory: a reader (pp. 1-5). New York: Columbia University Press, 1994.

TEIXEIRA, M. A; MOTTA, R. Unionism and feminism: alliance building in the Brazilian Marcha das Margaridas. Social Movement Studies, 1-17, 2020.

TEIXEIRA, M. A. et. al. Marcha das Margaridas 2019: alimentação, mobilização social e gênero. Food for Justice Working Paper Series, No. 2, Berlin: Junior Research Group Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy, 2020.

[1] Professora de Sociologia no Instituto de Estudos da América Latina (LAI) na Freie Universität Berlin (FU-Berlin) e líder do Grupo de Pesquisa Food for Justice: Power, Politics and Inequalities in a Bioeconomy.

[2] Coordenador Científico do Grupo de Pesquisa Food for Justice, no LAI (FU Berlin). Doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Rio de Janeiro, Brasil.

[3] Doutoranda em Sociologia e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Food for Justice, no LAI (FU Berlin). Mestra em Sociologia pela Universidade de Brasília, Brasil.

[4] Pimenta (2013), Aguiar (2016), Teixeira e Motta (2020) e Moreira (2019).

[5] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-09/ibge-inseguranca-alimentar-grave-atinge-103-milhoes-de-brasileiros. Acesso em 10 dez. 2020.