Eleições Municipais no Brasil: quem ganha? Quem perde? E as cidades?
Carina Serra Amancio*
Tales Fontana Siqueira Cunha**
No último mês de novembro foram realizadas as eleições municipais no Brasil. Fazer um balanço desse processo eleitoral não é algo simples. Basta dizer que são 5.570 munícipios, com prefeitos e vereadores, e 32 partidos que lançaram candidatos. Para além das infindáveis siglas e municípios que compõem o universo de análise, o cenário político do Brasil mudou radicalmente ao longo da última década. Em 2009 o país atingiu o clímax de seu ciclo de prosperidade econômica sob a direção do Partido dos Trabalhadores, retratado internacionalmente na capa da revista americana The Economist através da imagem do Cristo Redentor literalmente “decolando”. Já a partir de 2013, nas manchetes internacionais sobre o país predominou uma situação de crise política, social e econômica. Os protestos em junho de 2013 e às vésperas da Copa do Mundo de 2014; o impeachment da ex-Presidenta Dilma Rousseff em 2016; a prisão do ex-Presidente Luíz Inácio Lula da Silva no âmbito de uma operação jurídico policial de caráter fortemente midiático; o fortalecimento de lideranças de extrema direita e a eleição de Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 são apenas alguns dos momentos que dão conta de ilustrar a complexidade de se descrever o momento político brasileiro. Ainda assim, buscaremos nesse texto fazer alguns apontamentos preliminares sobre as eleições municipais levando em conta esse complexo pano de fundo.
Balanço eleitoral
Recapitulando brevemente, nas eleições municipais anteriores, realizadas em 2016, as cidades brasileiras assistiram a um crescimento da agenda conservadora ligada aos costumes, representadas nas candidaturas de direita e extrema direita. O Partido dos Trabalhadores foi derrotado em mais de 60% das prefeituras que governava. A campanha eleitoral deu vazão ao inflamados discursos de ódio - além dos ataques a direitos das mulheres e da população LGBTQI+ -, em campanhas que se ostentavam bandeiras “contra a corrupção” e “a favor da família”.
Já nas eleições deste ano, um fator comum nas análises eleitorais feitas “a quente” aponta para uma derrota do bolsonarismo enquanto força política. Esse diagnóstico se deve sobretudo à derrota dos candidatos diretamente apoiados pelo presidente nos principais pleitos eleitorais. Das 26 capitais, apenas em Vitória (ES) o candidato apoiado pelo presidente elegeu-se prefeito. Nas demais, o baixo desempenho de seus candidatos parece apontar para uma responsabilização do líder da nação na condução da pandemia nos grandes centros urbanos. Vale lembrar, Bolsonaro adotou uma postura fortemente contrária à ciência, referindo-se à Covid-19 como “gripezinha” e respondendo “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?” quando questionado sobre o país ter superado a China em número de mortes. Ademais, o Brasil é um dos poucos países do mundo onde ainda hoje as fake news sobre a eficiência da cloroquina, cuja defesa intransigente pelo presidente resultou na demissão sucessiva de dois Ministros da Saúde, continuam a circular com frequência. O principal exemplo dessa derrota é a cidade de São Paulo, onde o candidato bolsonarista, que liderava as pesquisas eleitorais com 29% a sete semanas do pleito, chegou em quarto lugar no primeiro turno, com apenas 10% dos votos válidos. Já o candidato vencedor, Bruno Covas (PSDB), cujo padrinho político João Dória (PSDB) havia sido eleito governador do estado em 2018 utilizando-se do slogan “BolsoDória” assumiu enquanto estratégia eleitoral vitoriosa afastar a sua imagem da do presidente. Essa derrota do bolsonarismo, entretanto, será nuançada à frente no texto.
A derrota de Bolsonaro, entretanto, não foi seguida diretamente por um fortalecimento do Partido dos Trabalhadores. O PT, que atingiu o seu número recorde de prefeituras em 2012, quando conquistou 628 municípios, passando para 254 no ano de 2016, agora conquistou apenas 179.[1] Ademais, não se saiu vitorioso em nenhuma capital e, com exceção da cidade de Recife, seus candidatos tiveram pouco protagonismo nas principais disputas eleitorais. Ainda assim, pode-se dizer que, em um cenário com tendência de crescimento da rejeição, a legenda conseguiu manter-se estável, com um número de governados na casa dos 6 milhões de pessoas. Nas palavras do ex-prefeito de São Paulo e segundo colocado nas eleições presidenciais de 2018, Fernando Haddad (PT), “tudo somado, o partido ficou do mesmo tamanho”.[2]
Se Bolsonaro e o Partido dos Trabalhadores, que protagonizaram a disputa presidencial de 2018, são apontados como “derrotados”, podemos então perguntar: quem saiu vitorioso nas eleições municipais de 2020?
O principal vencedor parece ter sido o denominado “Centrão”, conjunto de partidos políticos sem orientação ideológica específica, frequentemente associados a oligarquias locais e que historicamente orbitam o Poder Executivo em busca de vantagens e privilégios para garantir a sua manutenção no poder e suas redes clientelistas. Os cinco partidos que, a partir de 2021, vão governar maior número de habitantes do país são PSDB, MDB, DEM, PSD e PP. Desses, com a exceção do PSDB, partido do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso que, mesmo em primeiro lugar, foi aquele que mais perdeu cidadãos governados (queda de 48 para 34 milhões de governados), todos tiveram crescimento exponencial (DEM, PSD e PP) ou mantiveram o seu tamanho (MDB).[3] Seguindo a divisão proposta pelo cientista político Marcos Nobre, que separa o “Centrão” entre a ala que apoia ativamente o presidente (PP, PL, Republicano, partes do PSD) e a “direita tradicional” (DEM, MDB e PSDB) é possível dizer que houve sobretudo um fortalecimento da direita tradicional. Uma vez que os partidos da base de apoio bolsonarista também saíram fortalecidos, é possível nuançar a dimensão da derrota de Bolsonaro.[4] Ressalta-se ainda que as eleições internas do Congresso, previstas para o início de 2021, podem ressignificar essa avaliação.
Por último, é possível apontar que, no campo progressista, a principal revelação foi o desempenho do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), único do campo a conquistar uma capital (Belém-PA) e, mais especificamente, de seu candidato em São Paulo, Guilherme Boulos. Boulos, que é líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, foi recorrentemente apontado por seus adversários e por veículos de mídia como sendo “extremista” e “invasor de casas”. Ainda assim, e contando com um tempo de televisão significativamente inferior ao de seus adversários, conseguiu atingir 20% do eleitorado paulistano e classificar-se para o segundo turno. Ao longo das duas semanas seguintes, recebeu apoio enfático de lideranças de diversos partidos do campo democrático (PT, PCdoB, PDT e Rede) e conseguiu dobrar esse número, atingindo 40% dos votos válidos do maior colégio eleitoral da América Latina.
Excepcionalidade
As eleições municipais de 2020 transcorreram em um cenário de absoluta excepcionalidade. Ressalta-se que o país contabiliza mais de 180 mil mortes por conta da Covid-19. Sobretudo no campo progressista, campanhas costumam contar com amplas mobilizações e atividades nas ruas, além da campanha “de porta em porta”. Ainda que não esteja sendo devidamente respeitado nas cidades do país, entre outras razões por conta da postura negacionista do presidente, o distanciamento social e o calendário eleitoral mais curto, comprometeram a utilização dessas ferramentas e obrigaram os candidatos a reinventarem sua forma de comunicação. Tal situação fez com que as redes sociais tivessem protagonismo ainda maior do que vinham tendo em eleições anteriores.
Para além da diminuição das atividades nas ruas, também houve uma diminuição do número de eleitores. 29,5% dos brasileiros habilitados não compareceram às urnas no primeiro turno, contra uma média de 21% de abstenções nos últimos pleitos. Trata-se de recorde histórico, desde que os registros passaram a ser feitos. [5]
Outro fator importante a ser levado em consideração consiste no Auxílio Emergencial oferecido a trabalhadores informais e desempregados objetivando garantir-lhes proteção emergencial e fazer frente à crise econômica. Embora tanto a sua existência como o seu valor tenham sido fruto de reivindicação de setores da oposição no Congresso Nacional, a existência do Auxílio foi capitalizada politicamente pelo presidente e por sua base de apoio. Tal situação pode ajudar a elucidar o bom desempenho da base governista sobretudo em municípios pequenos, onde o impacto do Auxílio foi maior.
Horizontes futuros. E as cidades?
O conjunto das análises em torno das eleições municipais tende frequentemente a enfocar panoramas nacionais, sem levar em conta a especificidade da disputa do poder local e a política urbana. Ressaltamos, entretanto, que é através do território, onde a população vivencia em seu cotidiano os avanços da precariedade urbana e social, que se encontra a chave para uma reconstrução democrática. O que se passou no país nos anos 1980 bem o ilustra. A década, marcada pelo que a urbanista Ermínia Maricato denomina como o “ciclo virtuoso” de prefeituras progressistas, foi palco de programas de enfrentamento da desigualdade urbana que serviram de exemplos internacionais e consolidaram o fim do regime ditatorial instaurado em 1964. O orçamento participativo, a urbanização de favelas, a criação dos corredores de ônibus (hoje nomeado de Bus Rapid Transit, apesar de ser uma invenção brasileira), as melhorias habitacionais e urbanas por autogestão, e muitos outros programas, assinaram um marco de esperança para a superação de uma sociedade atrasada, extremamente desigual.
No caso de São Paulo, o paralelo é mais facilmente traçável: a campanha de Boulos contou com expressiva participação de sua vice, de 86 anos, Luiza Erundina (PSOL), ex-prefeita de São Paulo e uma das principais representantes do referido “ciclo virtuoso”, e de diversos quadros técnicos que atuaram politicamente naquele momento. A combinação da experiência e do conhecimento técnico com uma estratégia de comunicação criativa através das redes sociais, com forte apelo à juventude, mostrou-se valorosa. Ademais, a escolha de uma chapa com candidato e vice do mesmo partido, rara em um sistema partidário em que coligações são fundamentais para a garantia da governabilidade, pode alçar voos mais altos no segundo turno ao contar com o apoio enfático dos demais partidos comprometidos com a democracia, apontando para a centralidade da organização de frentes amplas em momentos estratégicos.
A mobilização da juventude e o discurso descontraído de Boulos trouxeram um novo fenômeno político que contrapôs o moralismo e o recente avanço do conservadorismo no Brasil. Os desafios no embate a favor da democracia são muitos e as disputas políticas também não apontam um caminho claro. Mas a expressiva força de uma nova geração leva a vislumbrar um horizonte renovado e de retomada das forças populares nos territórios.
* Carina Serra Amancio é arquiteta e urbanista, mestranda e pesquisadora do LabHab/FAUUSP, coordenadora política do Instituto Tricontinental e coordenadora nacional do BrCidades.
** Tales Fontana Siqueira Cunha é graduado em Direito, mestre e doutorando em Arquitetura e Urbanismo, todos pela Universidade São Paulo. É pesquisador do LabHab/FAUUSP.
Fontes:
[1] PSDB E MDB perdem o maior nº de prefeituras e PT encolhe pela 2ª eleição seguida; DEM e PP são os que mais ganham em 2020. Rio de Janeiro. Portal G1. 16.nov.2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/16/psdb-e-mdb-perdem-o-maior-no-de-prefeituras-dem-e-pp-sao-os-que-mais-ganham.ghtml. Acesso em: 10.dez.2020.
[2] HADDAD, F. Entrevista concedida a Carolina Linhares. Eleitor se moveu para a direita, e derrota de Bolsonaro é impressão, afirma Haddad à Folha. Folha de São Paulo. São Paulo. 5.dez.2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/12/eleitor-se-moveu-para-a-direita-e-derrota-de-bolsonaro-e-impressao-afirma-haddad-a-folha.shtml. Acesso em: 10.dez.2020.
[3] PREFEITOS DO PSDB vão governar maior número de habitantes; partido, porém, registra a maior perda em relação à última eleição. Portal G1. Rio de Janeiro. 29.nov.2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2020/eleicao-em-numeros/noticia/2020/11/29/prefeitos-do-psdb-vao-governar-maior-numero-de-habitantes-partido-porem-registra-a-maior-perda-em-relacao-a-ultima-eleicao.ghtml. Acesso em: 10.dez.2020.
[4] NOBRE, Marcos. Entrevista concedida a Tulio Kruse. Marcos Nobre: “Eleição deixou todos mais ou menos do mesmo tamanho”. O Estado de São Paulo. São Paulo. 22.nov.2020. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,marcos-nobre-eleicao-deixou-todos-mais-ou-menos-do-mesmo-tamanho,70003523553. Acesso em: 10.dez.2020. Ver ainda: MARINGONI, G. RÁPIDAS linhas sobre as eleições municipais de 2020. Portal Disparada. São Paulo. 01.dez.2020. Disponível em: https://portaldisparada.com.br/politica-e-poder/maringoni-eleicoes-municipais-2020/. Acesso em: 10.dez.2020.
[5] ESPECIALISTAS ANALISAM abstenção recorde nas eleições de 2020. Agencia Senado. Brasília. 30.nov.2020. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/11/30/especialistas-analisam-abstencao-recorde-nas-eleicoes-de-2020. Acesso em: 10.dez.2020.