E agora, José? A retração da democracia no Brasil e seus efeitos sobre povos e comunidades tradicionais
Mônica Nogueira[i]
Entre os anos 2003 e 2016, o Brasil vivenciou um ciclo de gestões democráticas, de avanços no reconhecimento de direitos, de políticas públicas para o enfrentamento das desigualdades sociais e promoção do desenvolvimento - muitas das quais atentas aos desafios da sustentabilidade e à diversidade sociocultural característica do país. A própria noção de povos e comunidades tradicionais (PCTs) emergiu na cena pública, nesse período, para referir além de povos indígenas e quilombolas, uma miríade de outras identidades e formas de organização socioculturais presentes no meio rural brasileiro.
A democratização e o franco desenvolvimento do país nesses anos entusiasmou brasileiros e aliados internacionais. Muitas instituições da cooperação internacional, que haviam sido importantes aliadas na organização da resistência à ditadura e à estruturação de agendas positivas, como a socioambiental, encerraram, total ou parcialmente, suas atividades no país.
Mas o impeachment da presidenta Dilma Roussef encerrou esse ciclo, dando início a outro, marcado contrariamente pelo declínio das conquistas sociais obtidas anteriormente. Entre os anos de 2016 e 2020, o Governo Federal implementou uma ampla reforma ministerial que desarticulou programas sociais e políticas públicas de promoção do desenvolvimento rural sustentável. Os cortes orçamentários foram progressivos, atingindo programas de incentivo à agricultura familiar, como os de compras públicas de alimentos, e políticas de financiamento e crédito. O desmonte se estendeu ainda a programas sociais de distribuição de renda, habitação rural e infraestrutura (saneamento básico, eletrificação do campo etc.).
A pandemia do novo coronavírus recrudesceu esse quadro, deixando agricultores familiares (muitos dos quais membros de povos e comunidades tradicionais) mais vulneráveis. Os empreendimentos comunitários enfrentam dificuldades para se manterem, visto que não podem mais contar com as vendas institucionais – dos programas de governo - nem com as feiras livres. O auxílio emergencial - mecanismo de proteção social no período de enfrentamento da pandemia -, tampouco alcança a todos e a extrema pobreza volta a rondar muitas comunidades.
Ao lado da política de desmonte de programas e políticas, foram extintos diversos conselhos da administração pública, em 2019, e mesmo os conselhos mantidos por intervenção do Superior Tribunal Federal (STF) enfrentam dificuldades de funcionamento, a exemplo do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). Seja pela extinção, seja pelo deliberado enfraquecimento desses espaços de participação social, por ação do Governo Federal, o resultado tem sido o crescente estreitamento da democracia no Brasil.
Nesse contexto, há ainda uma escalada da ofensiva contra os territórios tradicionais – historicamente ocupados por povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais –, em grande parte terras públicas conservadas, sobre as quais incidem fortes interesses econômicos. Assim, empreendimentos de larga escala (produtivos e de infraestrutura associada, como hidrelétricas, portos e outros) têm pressionado de forma crescente esses territórios, provocando a degradação ambiental e o incremento da violência no campo, inclusive assassinatos de lideranças comunitárias.
Povos e comunidades tradicionais estão, portanto, diante do desafio de se reorganizarem para fazer frente a essas adversidades. Com a retração de políticas públicas federais e as disputas sobre suas terras, águas e bens naturais, muitas comunidades têm orientado esse processo sob a perspectiva da “organização a partir do território” – ou seja, revalorizando as forças locais e a autonomia relativa. Ocupam espaços e acionam oportunidades em outros níveis: conselhos municipais e estaduais de meio ambiente, assistência social; linhas de crédito de bancos, como o Banco do Nordeste do Brasil (BNB); além de políticas públicas estaduais – especialmente em estados governados pela oposição ao Governo Federal.
Organizações de apoio e assessoria, aliadas de longa data - algumas desde o período de enfrentamento da ditatura –, também têm sido acionadas pelas comunidades. Mas muitas delas também enfrentam seus próprios desafios, sobretudo quanto à sustentabilidade institucional, em um cenário de escassez de recursos para o financiamento de projetos sociais ou produtivos.
Os movimentos sociais nacionais, como a Articulação do Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), nesse contexto, têm cumprido um papel importante na rearticulação de alianças nacionais e internacionais, em campanhas de denúncia e ações de advocacy, buscando exercer influência sobre atores sociais diversos, entre parlamentares, juízes, autoridades políticas e a opinião pública. Há, nesse contexto, uma forte apropriação das redes sociais como canais estratégicos de comunicação– especialmente após o início do isolamento social imposto pela pandemia –, o que tem posto em pauta os desafios da inclusão digital de povos e comunidades tradicionais.
É também uma novidade a emergência de um grande número de candidaturas indígenas, quilombolas e de outras lideranças de povos e comunidades tradicionais nas eleições municipais de 2020. Pelo menos 220 indígenas e 57 quilombolas foram eleitos para os cargos de prefeito, vice-prefeito ou vereador, em diferentes regiões do país. Um fenômeno que reforça a tendência de revalorização do local e indica a disposição das comunidades para ocuparem os canais institucionais da política, por meio de representantes eleitos para cargos nos poderes executivo e legislativo.
As legendas partidárias por trás dessas candidaturas, contudo, não revelam uma tendência inequívoca, à direita ou à esquerda do espectro político. Afinal as candidaturas abrangeram cerca de 30 diferentes partidos, do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Democratas (DEM) - partido que integra a chamada “bancada ruralista” para a defesa de interesses do agronegócio. Portanto, para que surtam efeitos positivos sobre a realidade de povos e comunidades tradicionais, os mandatos conquistados exigirão capacidade de articulação suprapartidária e uma estratégia de formação política associada, seja para apoiar os candidatos eleitos no exercício da função pública, seja para favorecer a participação e o controle social por parte das comunidades.
No plano produtivo, as comunidades sentem com mais força os efeitos da pandemia, neste momento. Algumas reduziram de forma significativa a produção dirigida ao mercado, dedicando boa parte de seus esforços de trabalho ao auto sustento. As comunidades que se encontram próximas de núcleos urbanos têm recorrido aos circuitos curtos de comercialização, com a oferta de cestas de produtos para compradores fixos – em arranjos que se aproximam mais ou menos da ideia de Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) -, ou a vendas por encomenda.
Por fim, uma iniciativa em curso, sob a coordenação do Ministério Público Federal (MPF), em parceria com o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), tem concentrado também esforços de atores diversos, incluindo pesquisadores e universidades, em torno da construção de uma plataforma digital de informações sobre territórios tradicionais. A perspectiva é produzir um levantamento dos territórios e de suas necessidades, para orientar a atuação de órgãos como o próprio MPF, na defesa de direitos de povos e comunidades tradicionais. É uma das poucas iniciativas, neste momento, em nível nacional e referida ao conjunto dos povos e comunidades tradicionais, constituindo-se assim em uma agenda estratégica, especialmente tendo em conta o engajamento do Ministério Público. Afinal, em diversos conflitos socioambientais e territoriais, povos e comunidades tradicionais têm encontrado apoio nessa instituição para oferecer resistência às violações de seus direitos, inclusive frente ao próprio Estado brasileiro.
Nos termos das próprias comunidades, o momento atual é de re-existência. A expressão assinala a insistência em existir, afirmando o direito à diferença, mas também se reiventando em meio às condições adversas que se estabeleceram no país. Nesse sentido, é não morrer.
[i] Antropóloga e professora da Universidade de Brasília (UnB), aonde coordena o Mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT).
Agradecimentos a Dadiberto Pereira Azevedo, Helmar Spamer, João Chiles Marques, Kátia Favilla, Lucimar Varanis Cavalcante, Rosilda Alves Coutinho, Valéria Pôrto dos Santos, membros de povos e comunidades tradicionais com que estabeleci diálogo para a produção deste informe.