Pela vida das mulheres!
O golpe jurídico-parlamentar de 2016 precipitou o Brasil em uma tragédia política e social que não cessa de produzir situações de perplexidade, horror e sofrimento.
Na política, a disseminação de discursos conservadores, misóginos, racistas, lgbtfóbicos e eivados de desprezo de classe, de um lado, e a criminalização da política e de todas as formas de organização, de outro, semeados no golpe, criaram o contexto que levou a ascensão da ultradireita, representada por Jair Bolsonaro, ao governo federal.
Do ponto de vista social, a destruição de políticas públicas para a igualdade racial, de gênero e de apoio à agricultura familiar e camponesa, o congelamento do orçamento da saúde e educação, as reformas trabalhistas e da previdenciária, os crimes socioambientais “autorizados” pelos governos pós-golpe, geraram um cenário de crescimento da pobreza e da desigualdade. A pobreza cresce principalmente entre as mulheres, a população negra e indígena, no campo, nas cidades e nas florestas. O desemprego e a precarização do trabalho crescem no contexto de crise econômica.
O governo Bolsonarista aprofunda esse cenário com seu programa neoliberal, conservador e fundamentalista, que se declara abertamente contrário aos direitos e autonomia das mulheres e meninas; que faz do racismo institucional e da violência policial sua prática; que defende a expropriação dos territórios indígenas, é agente e cúmplice da violência contra estes povos e suas lideranças; que criminaliza a política e todas as organizações defensoras de direitos humanos.
O que parece desrazão é a própria razão deste governo: a implantação de um programa devastador de direitos e de vidas e a instauração de um governo autocrático, de caráter militar-teocrático subordinado às grandes corporações financeiras e ao poder norte-americano. Mulheres, população negra, povos indígenas, população LGBT e pobres são alvo da política de ódio, violência e descaso deste Governo.
A pandemia de Covid 19 aterrissa num país já flagelado pelo pandemônio bolsonarista. Desde o final de fevereiro até os primeiros dias de setembro, se registraram mais de 125 mil mortes e mais de 4 milhões de brasileiros e brasileiras infectados(as) pelo coronavírus.
No contexto da pandemia, recaem ainda mais sobre nós mulheres a sobrecarga com o cuidado e o trabalho doméstico durante a quarentena, sem que a maioria de nós, principalmente nas periferias das grandes cidades, disponha de meios básicos para garantir as medidas de proteção e contenção da pandemia, como o acesso à água. No momento em que a violência doméstica e sexual recrudesce, o governo federal lança ataques aos serviços público de atendimento às mulheres. Empreende esforços para restringir direitos trabalhistas. Negligencia e restringe as medidas para proteger povos indígenas. Em suma, o governo federal converte a pandemia numa de suas armas de morte, evidenciando a política de morte que o sustenta.
Neste contexto, os movimentos feministas e de mulheres resistem de diferentes formas: mobilizam redes de solidariedade autogestionárias, se articulam na resistência às forças políticas que colocam em ameaça nossa autonomia, organizadas na sociedade e no Governo, e atuam junto com outras forças sociais numa ampla mobilização pela derrubada do governo, seu programa e as forças da coalizão que o sustentam.
Como pronta resposta frente aos impactos da pandemia, os movimentos feministas e de mulheres mobilizaram redes de solidariedade para prover suprimentos e kits de higiene e proteção, difundir informação sobre prevenção e apoiar e proteger mulheres em violência doméstica agravada na quarentena. A prática política da solidariedade se fortalece durante a pandemia articulada a lutas pelo direito à água, à renda básica, por saúde e contra a violência.
Os movimentos de mulheres negras têm denunciado o racismo praticado pelo Estado por meio principalmente da força policial e repressiva contra a população negra. O encarceramento massivo e o genocídio da juventude negra são as expressões da necropolítica do estado brasileiro. As mulheres indígenas organizadas denunciam a injustiça socioambiental agravada no Governo Bolsonarista, a violência contra os povos indígenas e suas lideranças e a negligência na proteção dos povos indígenas à pandemia.
Ganha centralidade no atual contexto, o enfrentamento ao fundamentalismo, seja como ideologia, seja como força política organizada em diferentes instituições, seja como política de Estado (que hoje governa o país em associação ideológica e política com setores neoliberais).
O fundamentalismo é uma ideologia profundamente conservadora, que nega a pluralidade e a diversidade e ameaça a vida democrática. É uma força econômica e política organizada (em instituições religiosas, empresas de comunicação, partidos políticos, grupos auto-organizados) e cada vez mais consolidada nos poderes do Estado e nos territórios. E o fundamentalismo se traduz na prática concreta, na palavra e no gesto violento dos(as) fundamentalistas, eles mesmos, contra corpos de grupos sociais vulneráveis e territórios materiais e imateriais de povos.
Nesta conjuntura, a luta contra o fundamentalismo é uma batalha ética, exigindo ações permanentes para enfrentar os desvalores que propagam, e é uma batalha política e institucional contra a violação de direitos e as violências que a expressão dessa força assume. Foi o que ocorreu último mês de agosto, quando grupos fundamentalistas, tentaram impedir o atendimento de uma menina de 10 anos, com uma gravidez resultante de estupro, e a garantia de seu direito de interromper a gestação. A ação do movimento feminista no plano local e nacional foi decisiva para garantir o atendimento e para sua proteção em todos os momentos desta rota crítica percorrida. O que este caso evidenciou é que o fundamentalismo é uma força política, econômica, cultural e religiosa com práticas de violência e discursos de ódio e crueldade que questionam a própria condição humana das mulheres.
Para enfrentar a palavra e a ação violenta dos setores fundamentalistas uma iniciativa importante em que estamos engajadas é a realização de uma campanha intitulada “Tire os Fundamentalismos do Caminho: pela vida das mulheres”, construída por uma aliança entre organizações interreligiosas de diferentes matrizes e organizações feministas, com o objetivo de amplificar a denúncia das ameaças que o fundamentalismo representa para a vida das mulheres brasileiras, principalmente para as mulheres negras, indígenas, lésbicas e trans.
Na atual conjuntura, uma luta central colocada para os movimentos feministas e de mulheres e o conjunto de movimentos sociais é pela derrubada do Governo bolsonarista, principal ameaça à democracia e à vida dos povos no território brasileiro e à permanência dos ecossistemas cruciais para a vida no planeta, como a Amazônia.
Um amplo movimento de resistência, no qual as organizações de mulheres têm sido centrais, exigem que este governo, que sequer deveria existir, precisa cair. A luta pela cassação da chapa e pela convocação de novas eleições presidenciais, junto ao Supremo Tribunal Federal, e pelo impeachment de Bolsonaro, junto ao congresso nacional, são condição para conter a devastação de vidas e direitos que assola o país. Mais amplamente, o desafio colocado é o de retirar da ultradireita o poder de governar o país, o que nos exige fortalecer nossa ação permanente e criativa no âmbito da sociedade, contra os desvalores baseados no patriarcado, no racismo, no individualismo, e na política de ódio que as forças de extrema direita semeiam.
A conjuntura exige muita ação, participação, engajamento, expressão pública de críticas e alternativas antissistêmicas. É preciso firmeza ao defender o justo, somar com atos concretos na luta por políticas em favor da democracia como forma de organização da vida social. Essa é a tarefa política que assumimos e queremos construí-la junto com todos que sonham com um mundo de justiça, liberdade e partilha do comum.