O URGENTE ACORDO SOBRE A AMAZÔNIA BRASILEIRA: O FALSO DILEMA ENTRE PRESERVAR E DESENVOLVER
Bertha Becker, geógrafa brasileira que se dedicou ao estudo da Amazônia, a definia como a mais antiga e arcaica periferia do sistema capitalista mundial1. O modelo de ocupação colonial, denominado economia de fronteira, se baseava na ininterrupta incorporação de terras e exploração de seus recursos, ambos vistos como ilimitados. Tal visão foi predominante ao longo dos séculos e é, ainda hoje, reproduzida pelo Brasil. Devido ao atendimento à crescente demanda por commodities, a floresta possui um valor alheio à suas características próprias, respondendo a demandas externas. Contudo, um modelo de desenvolvimento para a Amazônia em bases sustentáveis é viável e poderia ser parte fundamental dos esforços de recuperação econômica do Brasil pós-pandemia.
Dilemas do modelo tradicional
O modelo de crescimento do Brasil para a Amazônia ainda se baseia na predação de recursos naturais, no saque de terras públicas e na conversão de floresta para produção agropecuária. Todavia, ao longo dos anos 90, cresceram tanto a preocupação com a escassez dos recursos naturais quanto a demanda social por práticas de ocupação e de uso do solo que conciliem crescimento e conservação com demandas locais. A Amazônia tornou-se o grande foco deste debate, que levou a uma série de ações em prol de um novo modelo de desenvolvimento, entre elas a Conferência da ONU Rio-92.
Após quase três décadas de acúmulo ímpar de práticas de conservação pelo Brasil, o país ainda não foi capaz de acordar um modelo sustentável de desenvolvimento para a Amazônia. O paradigma desenvolvimentista tradicional ainda é visto como prioritário por diferentes setores do país e bastante robusto no que tange a força de sua narrativa. O governo mantém a retórica da alta produtividade agrícola do país, da enorme quantidade de áreas preservadas e da impossibilidade de fortalecer a conservação, frente a uma necessidade indissociável de produção agrícola2.
Frente a tal cenário, surgem dois questionamentos: 1) como fortalecer entendimentos que levem a uma valor(iza)ação da floresta em pé e de seus diversos serviços; e 2) como impulsionar uma narrativa que inclua novas práticas de crescimento verde.
Um novo caminho possível
Conforme o projeto Mapbiomas3, a Amazônia brasileira perdeu, entre 1985 e 2018, 47 milhões de hectares (área maior que a Suécia), dos quais 83% viraram pastagens e 12% plantações. Do total destas áreas, 86% estão abandonadas ou subutilizadas, normalmente por pecuária de baixa produtividade (<1 boi/hectare). No entanto, entre 2002 e 2014, o Brasil mostrou que crescimento não precisa estar vinculado ao desmatamento: apesar da diminuição de mais de 83% das taxas de desmatamento, o PIB da agropecuária aumentou4. Isso foi possível devido ao incremento da produtividade das terras já ocupadas associado à recuperação de áreas florestais degradadas. Este crescimento, porém, não se converteu em ganhos locais de mesma envergadura. Apesar de a Amazônia ter crescido acima da média nacional entre 1960 e 2015 (5,9% ante 4,1%), ela segue sendo a região mais pobre do país e apresenta problemas de distribuição de renda.
Novas alternativas são possíveis. Estudo recente do WRI Brasil com a Coppe/UFRJ 5 aponta que uma retomada verde que promova inovação em diferentes setores, entre eles a agropecuária, pode incrementar o PIB em até R$2,8 trilhões, além de combater efeitos das mudanças climáticas. Abaixo exploramos três aspectos que devem estar presentes em um novo modelo de desenvolvimento: 1) diversificação da base produtiva e incremento tecnológico, 2) pagamentos por serviços ambientais e 3) mudanças climáticas.
A multiplicidade de produtos da Amazônia permite a diversificação de sua base econômica. Um estudo da UFMG evidencia que um hectare de açaí manejado pode gerar uma renda de R$26,8 mil, cerca de 10x mais que a soja6. Outro ponto, evidenciado por Caetano Scannavino, da ONG Saúde & Alegria, é o veneno de escorpião amarelo, que pode chegar à R$371.000,00/g. É importante considerar também receitas de medicamentos desenvolvidos a partir de produtos florestais. O Captopril, desenvolvido a partir do veneno de jararaca e patenteado nos EUA, movimenta anualmente cerca de US$8 bilhões. Investimentos em ciência, tecnologia e inovação oferecem oportunidades de geração de valor que têm sido desperdiçadas, e levam à agregação de valor em mercados externos. Exemplos como o do açaí envolvem extensa mão-de-obra e baseiam-se em modelos associativos de produção que permitem a conservação da floresta e uma repartição mais capilar de dividendos.
No tocante aos serviços ecossistêmicos, é fundamental observar o suporte conferido pela floresta à produção agrícola nacional, como no caso do ciclo das águas no continente. Considerável parte do fluxo hídrico essencial à produção brasileira provém de sistemas chamados “rios voadores”, gerados e mantidos pela floresta em pé. Esses “rios”, provenientes de ciclos de evapotranspiração, irrigam a agropecuária nacional. Especula-se que tal volume de água seja pelo menos 2 vezes maior que o volume do próprio Rio Amazonas. A interdependência entre conservação da floresta e segurança hídrica é clara e deve ser valorada7.
Outra característica central é o papel do Brasil e da floresta na discussão global sobre as mudanças climáticas. O Brasil vinha sendo líder mundial sobre discussões acerca de posicionamento e trabalhos de compensação financeira, incentivando discussões como o REDD+. Simultaneamente desempenhava central papel multilateral de liderança do sul global, fomentando o multilateralismo e a cooperação internacional a partir de discussões ambientais. Apesar dos recursos disponíveis, lastreados por diferentes acordos internacionais, muitos custos dos serviços florestais não são considerados, limitando o alcance dos projetos existentes. A pauta não avançou por diversos motivos, entre eles embates de narrativas sobre a floresta.
Diversas possibilidades de geração de renda não são consideradas no processo de conservação da floresta. Tanto aqueles referentes às discussões regionais e globais, quanto outros que sequer são propriamente explorados, devido à falta de um projeto mais ambicioso. Manter a floresta em pé envolve diversas ações que podem levar à um dinamismo econômico nacional e a um reposicionamento do Brasil a nível global. Um acordo geral em prol de um novo desenvolvimento da floresta amazônica é inadiável.
Reposicionamento Brasileiro
A dicotomia preservação/desenvolvimento não se sustenta, como também cria narrativas deletérias que impedem a construção de alternativas para a retomada de um crescimento econômico inovador e sustentável no Brasil. Por um lado, a expansão da atividade agropecuária nacional deve respeitar a floresta e investir na melhora de sua produtividade. Por outro, um amplo arcabouço de políticas e incentivos deve repensar o desenvolvimento da Amazônia. Pontos fundamentais incluem a diversificação e fortalecimento de cadeias de valor baseadas na sua biodiversidade; inovação tecnológica; serviços ecossistêmicos; e o combate às mudanças climáticas.
Considerando a urgência de medidas para a retomada do crescimento econômico, entendemos que um Novo Acordo Verde Brasileiro deve passar pelo fortalecimento das unidades de conservação, regularização fundiária, desmatamento zero, e por um entendimento mais plural da floresta. Essas ideias encontram respaldo na proposta de Ismael e Carlos Nobre - Iniciativa Amazônia 4.08. Baseada no protagonismo da Amazônia, a iniciativa considera a biodiversidade, o desenvolvimento tecnológico e conhecimentos de povos originários e tradicionais como fundamentais. Em suma, uma Amazônia vista a partir da Amazônia.
Caso bem sucedido, um necessário acordo nacional sobre a Amazônia servirá de modelo para melhores práticas no mundo, e para o reposicionamento do Brasil na agenda ambiental global. Tal iniciativa deve trazer em seu bojo a capacidade que temos de criar compreensões empáticas sobre o outro e a possibilidade de sonhar novas realidades possíveis.
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Foto: Ribeirinho morador do Parque Nacional do Jaú (Autor Sgambatti Monteiro)
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[1] BECKER, Bertha K.. Geopolítica da Amazônia. Estud. av. [online]. 2005, vol.19, n.53 [cited 2020-08-19], pp.71-86.
[2] https://www.youtube.com/watch?v=LWCUkkvL_yg&feature=youtu.be
[4] http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/legal_amazon/rates
[5] https://wribrasil.org.br/sites/default/files/af_neb_sumarioexecutivo.pdf
[6] https://revistapesquisa.fapesp.br/crescer-sem-destruir/
[7] NOBRE, Antônio D..O Futuro Climático da Amazônia: Relatório de Avaliação Científica. 2020.
[8] Ismael Nobre and Carlos A. Nobre (November 5th 2018). The Amazonia Third Way Initiative: The Role of Technology to Unveil the Potential of a Novel Tropical Biodiversity-Based Economy, Land Use - Assessing the Past, Envisioning the Future, Luís Carlos Loures, IntechOpen