Evangélicos na política brasileira: conservadores e progressistas em disputa

Christina Vital da Cunha Professora Associada do Departamento de Sociologia Programa de Pós-Graduação em Sociologia Universidade Federal Fluminense
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

Neste artigo tenho como objetivo apresentar brevemente a recente atuação política de evangélicos no Brasil nas últimas duas décadas a partir de dados de pesquisas realizadas em parceria entre Instituto de Estudos da Religião, Universidade Federal Fluminense e Fundação Heinrich Boll.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os evangélicos perfaziam apenas 2,6% da população brasileira na década de 1940. Avançaram para 3,4% em 1950, 4% em 1960, 5,2% em 1970. Mas foi a partir dos anos 1980, quando eram 9% da população nacional, que o crescimento percentual de evangélicos passa a chamar atenção da mídia e da academia de modo continuado. Isso porque, como lembra Freston (1994), uma nova onda do pentecostalismo no Brasil teve início ao final dos anos 1970. Uma de suas marcas distintivas era o investimento teológico na prosperidade e na batalha espiritual (Mariz 1999). O grupo que resulta desta onda foi cunhado Neopentecostal (Mariano 1999). O alto investimento das denominações evangélicas neste período em ações de grande visibilidade como realização de cultos em estádios de futebol, construção de mega templos, engajamento político partidário e consolidação de espaços de mídia eletrônico e digital provoca conflitos no campo religioso e para fora dele. Em 1990 os dados do IBGE confirmaram a presença de 15,5% de evangélicos no Brasil. Em 2010 esse percentual chegou a 22,2%, o que corresponderia a 42,3 milhões de pessoas. Em 2020, o Instituto DataFolha aferiu o quantitativo de 31% da população como evangélica no Brasil (dos quais 58% são mulheres). O impacto da presença de evangélicos no país hoje é significativamente maior do que os números indicam. Seu crescimento nas grandes cidades, sobretudo em favelas e periferias, vem produzindo uma “cultura pentecostal” em favelas e periferias e que marca a sociabilidade de um grupo cada vez mais numeroso de brasileiros (Vital da Cunha 2018).

No campo político, desde a redemocratização, líderes evangélicos se engajaram em campanhas de esquerda ou populares à presidência da República. No entanto, como evangélicos são heterogêneos em termos doutrinários, teológicos e litúrgicos, algumas denominações, nestes mesmos períodos, apoiaram candidaturas de centro-direita e de direita. Ao chamarmos atenção para a heterogeneidade evangélica e de seus relativos posicionamentos políticos, queremos destacar que não há uma contradição necessária nestes apoios díspares. São frutos de arranjos que envolvem posições político-ideológicas diferentes, interesses institucionais e até mesmo econômicos de seus líderes que são, em muitos casos, empresários.

Uma das mais orgânicas e conhecidas participações políticas de evangélicos no Brasil contemporâneo é a Frente Parlamentar Evangélica. Ela existe como grupo de interesse desde, pelo menos, a Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) instalada no Congresso Nacional com a finalidade de elaborar uma constituição democrática para o Brasil após 21 anos de Ditadura Militar (1964-1985). Segue como grupo político-religioso após a promulgação da Constituição de 1988 e passou a ser oficial em 2003 com um estatuto e áreas definidas de atuação parlamentar. São sete os grupos temáticos mantidos pela FPE: saúde, educação, questão indígena, questão da mulher, violência contra a criança, questão LGBT, pedofilia (Vital da Cunha et al 2012). Reúne hoje, majoritariamente, deputados e senadores ligados a grandes denominações, a partidos de direita, conservadores nas agendas morais e afinados com interesses neoliberais.

Inicialmente o investimento político de evangélicos era prioritariamente em candidaturas para cargos proporcionais (vereadores, deputados estaduais e federais). Passaram a investir no lançamento de candidaturas para o Executivo. Em 2014 lançaram Pastor Everaldo, da Igreja Assembleia de Deus, a mais numerosa denominação evangélica nacional com mais de 13 milhões de fieis ativos. O pastor terminou as eleições em 5º lugar com menos de 1% dos votos válidos. A primeira vitória emblemática desta estratégia foi com a eleição de Marcelo Crivella para a prefeitura do Rio de Janeiro em 2016. Crivella era Senador até aquele momento, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, uma das mais conhecidas e transnacionais denominações pentecostais surgida no Brasil, filiado ao partido Republicanos. Naquele momento já observávamos um interesse significativo de poderosos líderes evangélicos na ocupação de espaços no judiciário brasileiro (Vital da Cunha et al 2017). Neste sentido, a criação da Associação Nacional de Juristas Evangélicos em 2012 é emblemática e temos acompanhado sua atuação no Congresso Nacional, no STF e na sociedade civil.

Nas eleições de 2018, o contínuo de estratégias e narrativas em defesa da família se apresentou em diferentes candidaturas, sob uma aura religiosa, ganhando força em torno do então candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro. A mobilização de sentimentos religiosos foi muito importante na candidatura de vários dos vitoriosos nas eleições, assim como a questão da segurança pública e economia (Vital da Cunha e Evangelista 2019, entre outros). Um clima de desânimo e descrença tomava conta do Brasil e para aquelas eleições, 44 % da população brasileira se dizia pessimista. Ou seja, não acreditava que haveria mudanças, mesmo que mudassem os políticos no Executivo e Legislativo nacionais. Não acreditavam em melhorias, não confiam em uma recuperação da economia e do desenvolvimento humano. Os dados são da Pesquisa Retratos da Sociedade Brasileira – Perspectivas para as Eleições 2018, realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião e Estatística (IBOPE) em março de 2018 por encomenda da Coordenação Nacional da Indústria (CNI). A desilusão pode ser explicada, em parte, porque 91% dos deputados alvo da operação Lava Jato iam disputar as eleições. No pleito presidencial anterior (2014), um desejo de mudança se manifestava entre 74% da população1. O que este quantitativo desejava era uma mudança não em direção ao futuro, mas sim ao passado. Ansiavam pela recuperação de elementos que teriam sido perdidos em torno da autoridade (de professores, de maridos, de pais e mães, patrões...), de costumes e também da qualidade de vida perdida com a crise na economia que se agravou no Brasil a partir de 2014. Este desconforto generalizado correspondia a situações singulares e também mais gerais vividas em outras sociedades no ocidente. No que diz respeito à perda da autoridade, serve-nos à análise do contexto político nacional tanto a recente contribuição de Nancy Fraser sobre a perda da autoridade política quanto as reflexões de Gilberto Freyre sobre a sociedade brasileira, publicadas nos anos 1930, nas quais apresenta o mandonismo e a autoridade masculina como alguns dos elementos estruturais das relações sociais no Brasil. Em termos nacionais, o avanço de políticas inclusivas e de ampliação de direitos para grupos minoritários (negros, mulheres, travestis, gays e lésbicas, quilombolas, entre outros grupos) nos governos progressistas que tivemos no Brasil durante uma década e meia, gerou reações do atores sociais que se sentiram perdendo com estas mudanças. Um caráter retrotópico se anunciou na última década. Uma utopia que se encontra no passado, como definiu Bauman (2017). Em termos nacionais isso se apresentou nas eleições de 2018 e dali em diante na forma de uma Retórica da Perda a qual defino como “uma tática discursiva articulada por diferentes lideranças sociais e políticas (dentre elas, religiosas) baseada em um imperativo: o retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança, da unidade. É um discurso que se contrapõe a mudanças sociais experimentadas socialmente no mundo e que a literatura sociológica detectou de modo significativo a partir dos anos 1990 e, no Brasil, especialmente a partir de meados dos anos 2000. A insegurança moral e até ontológica gerada por mudanças em paradigmas sobre corpo e sexualidade, somadas ao aumento da violência armada no campo e na cidade produziu em um contingente significativo da população um desejo de retorno a um status quo ante no qual não se sentia tantas ameaças físicas, morais e patrimoniais” (Vital da Cunha prelo). A volta do padrão de família nuclear, por exemplo, da autoridade masculina sobre mulher e filhos vem sendo apresentada como basilar para a reconstrução da sociedade brasileira por uma miríade de atores sociais, destacadamente religiosos cristãos. Para evangélicos eles seriam o “sal da terra” a garantirem melhores condições de vida à sociedade brasileira.



Evangélicos progressistas na política

É no seio da diversidade evangélica que observamos o crescimento de um movimento progressista organizado. Evangélicos de face histórica ou pentecostal, ligados ao movimento negro, de mulheres, LGBTQI+, juventude etc. que lutam por justiça social, inclusão, valorização da diversidade. Formam coletivos progressistas que se apresentam como grupos mais ou menos estruturados que se reúnem em seminários, redes virtuais e até em frentes políticas. Muitos de seus integrantes se apresentam como desigrejados, integrantes de comunidades não estruturadas, evangélicos não denominacionais, também chamados autônomos (Novaes 2020). Para as eleições municipais de 2020 este movimento está se organizando em torno da Bancada Evangélica Popular para se contraporem ao conservadorismo que caracteriza a atuação da Frente Parlamentar Evangélica no Congresso Nacional. Dentre as candidaturas apoiadas pelo movimento há transgêneros, mulheres, ativistas do movimento negro, entre outros. Nós, estudiosos, e a mídia seguimos acompanhando este fio da história que constantemente nos surpreende e desafia. As situações sociais são complexas e estamos observando composição a composição o que estas interações sinalizam e como podemos refletir sobre mudanças e continuidades a partir delas.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

FRESTON, Paul. (1994), “Uma breve história do Pentecostalismo brasileiro: a Assembléia de Deus”. Religião e Sociedade, vol. 16, no 3, pp. 104-129.

FRASER, Nancy. “Do neoliberalismo progressista a Trump – e além”. Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 17 - Nº 40 - Set./Dez. de 2018

FREYRE, Gilberto (1933), “Casa Grande & Senzala”: Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal, Rio de Janeiro, José Olímpio.

FREYRE, Gilberto (1936), Sobrados e Mucambos: Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento Urbano, Rio de Janeiro, José Olímpio.

MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São Paulo: Loyola, 1999.

MARIZ, Cecília. (1999). “A teologia da guerra espiritual: uma revisão da literatura sócio antropológica”. Revista Brasileira de Informação Biobliográfica em Ciências Sociais, vol. 47, pp. 33-48.

MARQUES, Rafaela Lima. Um embate entre Marcelos? Uma análise das interfaces entre religião, mídia e política nas eleições de 2016 no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. PPCULT-UFF: 2018.

REIS, Livia. Crivella Prefeito: etnografia de um processo eleitoral. In: 41 Encontro Anual da Anpocs, 2017, Caxambu. 41º Encontro Anual da Anpocs.

VITAL DA CUNHA, Christina. “Governo Bolsonaro e ANAJURE: barganhas religiosas entre judiciário e política” in Religião & Cultura, 26 de abril de 2020. Fonte: https://medium.com/religi%C3%A3o-e-cultura/governo-bolsonaro-e-anajure-barganhas-religiosas-entre-judici%C3%A1rio-e-pol%C3%ADtica-27542aea8e1f

VITAL DA CUNHA, Christina ; LOPES, Paulo Victor Leite e LUI, Janayna 2017a Religião e Política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll: Instituto de Estudos da Religião.

VITAL DA CUNHA, Christina ; LOPES, Paulo Victor Leite (2012) Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll; Instituto de Estudos da Religião.

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VITAL DA CUNHA, Christina. 2018. Pentecostal cultures in urban peripheries: a socio-anthropological analysis of Pentecostalism in arts, grammars, crime and morality. Vibrant v.15 n.1.

VITAL DA CUNHA, Christina; EVANGELISTA, A. C. . Estratégias eleitorais em 2018: o caso das candidaturas evangélicas ao legislativo. SUR. REVISTA INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (IMPRESSO), v. 29, p. 87-100, 2019.

1 Fonte: Folha da São Paulo. Data da matéria: 09 de junho de 2014. Disponível em http://www1.folha.uol.

com.br/poder/2014/06/1467221-um-terco-do-eleitorado-nao-quer-pt-nem-psdb-diz-cientista-politico.shtml.