Reforma Tributária tem que reduzir desigualdades
Quem no Brasil recebe lucros e dividendos, independentemente do valor, está livre de pagar imposto. Só por esse único fator o país já merece urgente uma reforma tributária. Segundo dados de 2018 fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 40% de toda renda do Brasil estava concentrada nas mãos dos 10% mais ricos, enquanto a metade da população sobrevivia com R$ 413 por mês.
Um dos principais instrumentos de continuidade e aprofundamento dessa desigualdade é o sistema tributário brasileiro. Apesar de várias tentativas de mudança, ele segue impiedosamente a lógica regressiva: paga mais quem ganha menos – afrontando diretamente o Artigo 145 da Constituição Federal, que define a cobrança de impostos graduada à capacidade econômica do contribuinte.
A prova cabal disso é participação elevada dos impostos sobre consumo, como ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, entre outros. Esses tributos, que penalizam quem ganha menos retirando da população o poder de compra, representaram 49% da carga tributária brasileira em 2018. Nos EUA, por exemplo, a carga tributária de impostos sobre consumo é de 17% - quase 1/3 do que os brasileiros pagam. Em oposição, os tributos sobre patrimônio e renda no Brasil somaram apenas 22,7% do total. Enquanto nos EUA essa fatia foi de 34%.
Dados do extinto Ministério do Planejamento mostram que nos 35 países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) a média dos tributos sobre o patrimônio e renda é, inversamente, de quase 40%. Já a parcela dos impostos sobre consumo nos países da OCDE é de 32,4%.
Segundo a Oxfam Brasil, só a Hungria tem uma carga tributária sobre bens e serviços maior que a do Brasil. A função distributiva dos impostos, adotada pela maioria dos países desenvolvidos, é possível graças à estrutura progressiva: paga mais quem ganha mais. As estatísticas brasileiras mostram, no entanto, que o País passa longe desse caminho.
Para o economista Eduardo Moreira, o sistema tributário brasileiro é uma máquina de desigualdade social. Em suas palestras ele sempre destaca que 72% da poupança privada do Brasil está em títulos públicos. Ou seja, os juros desses títulos são financiados por uma carga tributária baseada em quase 50% dos impostos sobre consumo. “É um Robin Hood às avessas, tirando dos pobres para dar aos ricos”.
Segundo o especialista em direito tributário, Marciano Buffon, é inconcebível que 55 milhões de pessoas, vivendo com menos de R$ 1 mil/mês, transfiram para o Estado brasileiro metade dessa renda, pagando tributos sobre o consumo de bens.
O Congresso Brasileiro tem, no mínimo, três iniciativas de reforma tributária apresentadas em 2019 como Proposta de Emenda Constitucional - PEC. Todas tramitam no momento na Comissão Especial criada para esse assunto e formada por senadores e deputados. As propostas seriam discutidas a partir de meados de março, mas em função da pandemia do Coronavírus foram deixadas provisoriamente de lado. A ordem no momento é votar só pautas urgentes sobre saúde pública, já que além da crise econômica-social, o Brasil enfrenta uma grave crise sanitária.
Simplificação de impostos e nada mais
Duas propostas de reforma tributária concorrem entre si. Uma é a PEC 45/19 apresentada por um deputado federal e de autoria do economista Bernard Appy, ex-secretário executivo de Política Econômica do Ministério da Fazenda entre os anos 2003 e 2009. A outra é a PEC 110/19 apresentada pelo Senado Federal quase com as mesmas proposições. Nos bastidores do Poder Legislativo, Davi Alcolumbre - presidente do Senado (DEM do Amapá), disputa com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM do Rio de Janeiro), a liderança da pauta sobre a reforma tributária.
Na avaliação de auditores e economistas, ambas são semelhantes nos seus objetivos, mas diferentes em conteúdo. As variações passam por abrangência (fusão de impostos), prazos de transição e grau de autonomia da União, estados e municípios para fixar alíquotas de impostos, taxas e contribuição.
As duas PECs propõem a substituição dos principais tributos de produtos e serviços, como o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS; o Imposto Sobre Serviço - ISS; o Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI e o Programa de Integração Social-PIS/Cofins - Contribuição para Financiamento da Seguridade Social. Tudo isso junto seria trocado pelo Imposto de Bens e Serviços – IBS, que é o equivalente aqui na Alemanha ao Imposto de Valor Agregado.
Na opinião do professor da Fundação Getúlio Vargas – FGV, Luiz Alberto dos Santos, as duas propostas tentam simplificar e tornar menos caro o recolhimento dos tributos sob o ponto de vista da burocracia e do tempo necessário para gerir essas obrigações. Para acabar com chamada guerra fiscal entre estados, as duas propostas adotam o princípio da tributação no destino. Ou seja, a receita será recolhida e arrecadada onde o produto for enviado e não onde for produzido, como ocorre até o momento. “Os textos promovem uma uniformização tributária no âmbito federal”, explica Santos, que também é consultor do Senado Federal.
Paulo Gil, auditor fiscal da Receita Federal e diretor do Instituto de Justiça Fiscal, afirma que a mera simplificação do sistema tributário pode significar apenas uma maquiagem do problema maior. Segundo ele, a unificação de impostos de várias esferas e contribuições sociais, pode afetar negativamente o financiamento do gasto social.
O economista Eduardo Moreira lembra que o Brasil tem mais de 90 diferentes tributos, somando 260 mil artigos e mais de 3.500 normas tributárias. Por essa complexidade, segundo ele, o Brasil é dos mais países no ocidente com maior número de litígios judiciais nessa questão. “A simplificação é bem-vinda, mas está longe de ser o principal problema”, lembra ele, referindo-se à tributação de grandes fortunas, que não será equacionada.
A mesma opinião é compartilhada pela deputada federal do PSOL do Rio Grande do Sul, Fernanda Melchiona. Ela integra a comissão especial de avaliação das PECs e vê caráter superficial nas duas propostas – que não interferem na lógica regressiva de tributação e seguem impondo altas taxas sobre as camadas mais baixas da população. “Há 5 anos o País está em recessão. Estudos mostram que os mais ricos acumularam 3,3% a mais de capital e 10% da população entrou na linha de pobreza. Essas propostas são remendos”, criticou ela no site da Brasil de Fato.
Justa, Solidária e Sustentável
Outra proposta que tramita no Congresso Nacional é a Emenda Substitutiva Global - 178/19, assinada pelos partidos de oposição na Câmara dos Deputados (PT, PCdoB, PDT, PSB, PSOL e Rede). A emenda substitui o relatório da PEC 45/19 e é baseada no estudo “A Reforma Tributária Necessária”, elaborado por 42 auditores fiscais da Fenafisco – Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital e da Anfip - Associação Nacional dos Auditores Fiscais. Economistas e cientistas sociais da Plataforma Política Social também colaboraram no esforço conjunto.
O documento prevê tributação da renda, da propriedade e da riqueza, das transações financeiras, de bens e serviços. Também cria novas formas de arrecadação como a tributação ambiental e a tributação do comércio internacional.
No campo da simplificação, a proposta dos partidos de oposição sugere a criação de dois impostos: um para estados e municípios e outro para a União. “Nossa proposta nessa questão tem chances reais de vencer o debate porque ela respeita o pacto federativo e vai ter apoio de governadores e prefeitos”, comenta o economista e ex-ministro Aloizio Mercadante (PT de São Paulo).
Para garantir a tributação justa e solidária, a emenda 178/19 traz a cobrança de Imposto sobre Grandes Heranças com alíquota máxima de 40%. Assim como nos EUA, a proposta permite deduzir da base de cálculo doações para instituições sem fins lucrativos nas áreas de educação, saúde, ciência e tecnologia. Na Alemanha essa alíquota vai de 7% a até 50%, dependendo do grau de parentesco e do valor do patrimônio a ser herdado.
“É um imposto muito justo e pago uma única vez”, diz Mercante, lembrando que Estudos do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e outras instituições multilaterais conservadoras mostram que a desigualdade é um entrave ao desenvolvimento. Na mesma linha está a criação do Imposto sobre Grandes Fortunas, com alíquota de 0,5% sobre o patrimônio líquido de pessoa física que ultrapassar 8 mil vezes o limite mensal de isenção do imposto de renda. O objetivo é tributar jatinhos, helicópteros e iates de bilionários.
Vale lembrar que em plena pandemia, precisamente dia 27 de abril, o governo Bolsonaro publicou uma instrução normativa aliviando a tributação sobre lucro líquido de bancos. A alíquota foi reduzida de 20% para 15%. Apenas os quatro maiores bancos do país: Itaú Unibanco, Bradesco, Banco do Brasil e Santander tiveram lucro de R$ 81,5 bilhões em 2019 – um recorde nominal, com crescimento de 18% na comparação com o registrado no ano anterior. Com a medida, o Brasil pode perder R$ 4 bilhões em arrecadação somente com essas quatro instituições financeiras.
O estudo também propõe mais progressividade nas alíquotas do Imposto de Renda. No Brasil elas têm somente três faixas: 15%, 20% e 27,5%. Auditores e políticos da oposição querem aumentar a alíquota máxima conforme a renda do contribuinte. A mesma tabela será adotada para o imposto sobre grandes fortunas, conforme o valor do espólio.
Meio ambiente e saúde
A área ambiental também é contemplada na Emenda 178/19. A proposta cria uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE ambiental para estimular a transição à uma economia ecológica. Trata-se de um imposto seletivo para tributar setores que emitem muito dióxido de carbono (CO2), como toda economia baseada em petróleo.
A ideia é estimular energias limpas. O mesmo imposto será aplicado ainda na indústria extrativista, mineral e demais que tenham impacto forte e poluente. O objetivo é estimular esses setores a desenvolver tecnologias e inovações para ter maior competitividade, além de estimular a sustentabilidade ambiental. Para Mercadante, a reforma tributária tem que ser uma portadora de futuro e olhar pros grandes temas. “O Brasil tem um elemento dramático que é o problema ambiental”.
Na mesma ótica, a proposta inclui uma CIDE para a área da saúde. “Não podemos fazer uma reforma tributária que o imposto de um maço de cigarro seja o mesmo de um litro de leite”, explica o ex-ministro petista. Além do tabaco, a CIDE da saúde vai incidir sobre bebidas alcoólicas, agrotóxicos de tarja preta, bebidas e produtos adocicados – seguindo a tendência internacional de diferenciação de alíquotas para produtos nocivos.
Justiça no campo
Para coibir a especulação da terra, os partidos de oposição propõem o Imposto sobre Propriedade Territorial Rural - ITR progressivo ao valor da propriedade. Quem tiver um sítio não vai pagar o mesmo valor por hectare que um latifúndio. No Brasil inteiro, os impostos com as terras rurais são de apenas R$ 1 bilhão ao ano. Para se ter ideia dessa disparidade, a arrecadação de impostos sobre consumo é de R$ 2 trilhões.
Além disso, o faturamento da agropecuária em 2019 foi de R$ 631 bilhões. Ou seja, o custo de manter uma terra improdutiva é quase zero. „Esse tributo poderia ser, no mínimo, 20 vezes maior que o atual e depois ser deduzido conforme a produção ou a preservação da área, se for uma reserva natural”, avalia Mercadante. Com o ITR progressivo a meta é canalizar a arrecadação para assentamentos e financiar a agricultura familiar.
“Não estamos propondo nenhuma revolução. Isso é apenas um alinhamento, a média prazo, com os parâmetros da OCDE. Ou seja, um capitalismo que não permaneça essa brutalidade selvagem de desequilíbrio, exclusão social, pobreza e violência. Não podemos seguir nessa visão de acumulação primitiva e violenta de capital. Precisamos criar padrões que o Estado Social seja recuperado”, avalia Mercadante.
Gislene de Lima-Kamp é jornalista livre com pós-graduação em Ciências e Sociais no Brasil e Steuerfachangestellte na Alemanha