Invisibilidade e o vírus

A pandemia do COVID-19 e as favelas brasileiras
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

Por: Juliana Simionato, gerente de áreas sociais da TETO Brasil

A pandemia silenciosa que se espalhou rapidamente pelo mundo trouxe a tona, nos países da América Latina, uma realidade que já conhecemos a muito tempo: a desigualdade social. Ela se manifesta na privação de direitos básicos, determinante para o aumento da propagação do vírus, e se materializa nas favelas, onde estão moradores que convivem, desde períodos remotos da nossa história, com a violência e a precarização das condições de trabalho e moradia e para os quais a falta de saneamento básico e o adensamento habitacional excessivo são uma realidade diária.

No Brasil, mais de 11 milhões de pessoas1 vivem às margens da sociedade, atrás de muros de injustiça, em bairros invisibilizados nas franjas da cidade. Locais esquecidos pelo poder público e nos quais os direitos não chegam em sua plenitude. Nas 65 comunidades que a TETO Brasil trabalha e está atualmente monitorando e prestando suporte, vivem mais de 5 mil famílias que não possuem acesso diário à água potável, o que inviabiliza a lavagem constante das mãos e demais medidas de higiene. Nestes territórios, convive-se diariamente com esgoto correndo pelas ruas, devido a falta do serviço de saneamento, e com a ausência de coleta de lixo, que se aglomera em trechos vazios da comunidade ou é queimado gerando ainda mais problemas de saúde e aumentando a demanda de atendimento nos hospitais.

A este cenário, soma-se a insalubridade das moradias; casas sem janelas, coladas umas nas outras, úmidas pelas chuvas que entram pelas frestas nas paredes e nos telhados e pelo piso de terra batida. As casas das famílias com as quais trabalhamos possuem um tamanho médio de 27m² e apenas um dormitório, sendo que algumas delas não possuem nem ao menos banheiro. Assim, não é de se espantar que 58% das famílias tem ao menos uma pessoa com problemas respiratórios e estão ainda mais vulneráveis diante do COVID-192. Também não nos surpreende, embora nos alerte, que nestas condições o isolamento social indicado pela Organização Mundial da Saúde torna-se impraticável para grande parte das famílias, embora urgente.

Essas famílias vivem em situações de vulnerabilidade extrema, pois seus baixos salários e informalidade nas relações de trabalho não permitem que elas acessem o mercado formal de imóveis. Segundo dados do DATA Favela, 7 em cada 10 famílias tiveram sua renda reduzida devido ao novo coronavírus. São trabalhadores autônomos, 67% deles possuem empregos informais e contam com um salário médio de R$ 260,00 mensais. Por isso vivem de forma precária e não podem contar com o suporte da legislação trabalhista, nem com as políticas emergenciais pensadas para quem tem carteira assinada3.

Se você é um ou uma trabalhadora informal e não tem muitas reservas, você irá hesitar em deixar de trabalhar por um dia ou uma semana, pois precisa sustentar sua família. Se sua família passar fome naquela semana, você não irá seguir todas as recomendações da OMS.

Mesmo recebendo com certa frequência relatos de pessoas com sintomas que não foram testadas e que inclusive vieram a óbito, podemos visualizar que a pandemia ainda não chegou em sua integralidade nas favelas, mas já ameaça o frágil sistema de saúde pública, que com seus poucos leitos disponíveis, não suporta nenhuma pressão adicional.

Outro desafio das cidades brasileiras na contenção do vírus é a falta de diretrizes do governo federal, que não tem um posicionamento unificado sobre os direcionamentos a serem seguidos. O presidente Jair Bolsonaro e o antigo ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta, repassavam para a população informações opostas sobre o enfrentamento à doença, fragilizando o consenso que outros países que venceram a pandemia alcançaram e indicaram como essencial neste combate. Enquanto Bolsonaro saiu às ruas sem respeitar os alertas do ministério da saúde, Mandetta deu uma entrevista ao Fantástico, programa jornalístico de grande audiência no Brasil, onde defendeu o isolamento e disse esperar um discurso afinado com o presidente.

A imposição do distanciamento social e o reforço de políticas de prevenção é muito difícil quando a capacidade institucional é limitada e as informações desconexas. A crise política que se coloca também afeta a credibilidade do governo perante a população, principalmente das favelas, que não se sente representada pelas medidas.

COM A CRISE POSTA, COMO ATUAMOS

Quando a TETO trabalha em conjunto com comunidades precárias e invisíveis na produção social do habitat, a organização se propõe a ter como ponto de partida o que já existe nas comunidades diante da lacuna de serviços públicos. Trabalhamos então na produção de um ambiente comum pelos que nele habitam, para que possam desenvolver não apenas um equipamento social, mas também suas capacidades individuais e comunitárias, durante a busca de soluções para os problemas que enfrentam.

Neste sentido, nossa atuação se dá totalmente em campo, mas tem um grande potencial de ir além do território, bastava que olhássemos com mais atenção no como desenvolver esse potencial. Substituímos os mutirões e as visitas semanais feitas pelas equipes de voluntariado, pelas ligações quase diárias dos voluntários e voluntárias aos moradores e moradoras. Diante deste contexto, no qual existe uma baixa confiança nas instituições públicas, entendemos que também seria nosso papel levar a informação de forma rápida e segura aos moradores, sem gerar pânico. Em um contexto no qual 85% das pessoas possuem acesso a internet e as notícias mais atuais apenas via celular4, o Whatsapp ganhou um papel essencial na democratização da informação e substituiu ferramentas com as quais estávamos mais acostumados, com a serra e o martelo

Sabemos que as lideranças comunitárias possuem um papel fundamental, tanto para garantir que as informações cheguem a mais pessoas quanto para influenciar atitudes, pois são referências nas quais os moradores confiam. Por isso, focamos neles a comunicação, buscando fortalecer a organização interna e o trabalho em rede, além de garantir que as informações corretas cheguem a um número maior de moradores.

Esse contato direto com as lideranças também nos permite realizar o levantamento de informações destas comunidades, muitas vezes esquecidas pelo poder público, auxiliando na identificação de ocorrências da doença nas comunidades e de outras instabilidades causadas pela quarentena, como a falta de água. Como não existem testes suficientes no país, é difícil termos a informação exata de onde o vírus está se espalhando nas favelas, o que aumenta o risco de propagação da doença.

A parte da saúde pública e das questões médicas, nós também coletamos informações sobre o acesso a alimentação, pois essa é outra dimensão da crise. Por fim, também perguntamos sobre o aumento da violência e situações anormais na comunidade, além de avaliar o conhecimento e o comportamento em relação à doença: como têm reagido, como as relações sociais têm sido alteradas, se estão respeitando a quarentena, se a mesma tem gerado pânico, o que acreditam, etc

Buscando complementar a informação repassada pelas lideranças, estamos atualmente utilizando outra fonte de informação que temos disponível, a avaliação de impacto de um dos nossos principais projetos; a construção de moradias de emergência. Esse segundo estudo, que já estava em andamento, é elaborado em parceria com um centro de pesquisa reconhecido no Brasil, a FGV, e usa como base informações de aproximadamente 605 famílias, que vivem em 25 comunidades nos 6 estados em que atuamos.

Contando com essa base, começamos a realizar, ainda em conjunto com a FGV, um controle de informações sobre a pandemia com todos os moradores registrados em nossa base de dados. Entendendo a relevância destas informações, estamos também ampliando a pesquisa com os dados coletados na realização do diagnóstico comunitário,levantamento que integra a metodologia de trabalho da TETO e é realizado a cada dois anos. Nele, avaliamos questões como saúde, educação, infraestrutura, condições de moradia, trabalho e renda, além das capacidades comunitárias que buscamos fortalecer no nosso trabalho.

As favelas invisibilizadas nas periferias da cidade precisam que toda a atenção esteja voltada para elas. Além de jogar luz sobre a real situação da pandemia nas favelas, esse conjunto de estudos e pesquisas nos trará insumos para traçar os possíveis caminhos a serem seguidos no momento pós crise e o novo papel das organizações sociais neste cenário,entendendo que novas urbanidades precisarão ser construídas pelas cidades latino-americanas, para evitar situações de incerteza como a que estamos vivendo. Sabemos que essa resposta virá das próprias favelas que possuem os pés fincados nessa realidade e a cabeça pensando a partir deste local5.

Temos acompanhado o movimento das favelas brasileiras se organizando e se politizando cada vez mais. Os moradores destas comunidades sabem que existe uma nova realidade a ser construída após a pandemia e cada dia tem ficado mais clara a importância das favelas se colocarem como protagonistas na construção dessa nova sociedade. Nesse âmbito, buscamos contribuir para o fomento do potencial da comunidade que pensa e transforma a cidade a partir das suas vivências no território e das necessidades que diagnostica em seu cotidiano.

Vemos também que o sentido de urgência foi ampliado e a solidariedade ganhou novos formatos nesse momento. Foram criadas diferentes redes, não só entre as favelas, mas entre organizações e a sociedade para garantir que a ajuda chegue o mais rápido possível às pessoas mais afetadas. Segundo o catarse, plataforma que abriga a campanha “Por Uma Quarentena Mais Justa”6, na qual a TETO arrecada doações para levar kits de higiene, cestas básicas e água às comunidades que apoiamos durante a pandemia, 64% das pessoas que doaram para a organização nunca haviam doado na plataforma. Outro exemplo é a articulação popular “Renda Básica Emergencial”, que emergiu de grupos organizados e movimentos sociais e foi extremamente necessária para garantir a aprovação federal de uma renda mínima a todos estes cidadãos que terão sua renda afetada devido a quarentena.

Não sabemos qual será o futuro das cidades na América Latina, mas uma coisa temos certeza: as formas de comunicação serão reinventadas, trazendo mais visibilidade a realidade daqueles que vivem em situação de vulnerabilidade , as redes de organizações que trabalham por um mesmo propósito serão mais potentes e terão mais força para agir e as favelas sairão fortalecidas para enfrentar os problemas que vivenciam diariamente e se tornarem visíveis para toda a sociedade.