A habitual ausência do Estado nas favelas
O Rio de Janeiro sintetiza um país mal resolvido com seu passado. À beira-mar ecoam dores de africanos escravizados que chegavam de longas viagens transatlânticas em navios negreiros. Entre 1500 e 1856, 2 milhões foram trazidos à cidade. Livres da chibata, os negros só dispunham do lombo ferido para dar novo sentido à vida em 1898, quando foi abolida a escravidão no Brasil. A exclusão perpetua, e as favelas invadem a exuberante paisagem carioca como um grito de existência — resistência é privilégio. Na pandemia, o abismo social se torna mais evidente do que nunca.
As recomendações da Organização Mundial de Saúde são claras. É preciso ficar em casa e tomar os cuidados de higiene. Agora, imagine-se em um cenário hipotético. Uma mãe solteira e seus quatro filhos dividem uma casa de 12 metros quadrados sem janela. Faxineira diarista, ela perdeu todos os clientes com o início da pandemia. As crianças faziam sua principal refeição na escola, que está fechada, e choram com fome. Para piorar, a casa não tem água encanada ou esgoto.
Esta é a realidade de muitos lares das favelas cariocas. Cumprir as normas da quarentena parece fora da realidade para essa população. Há décadas, o Estado só se faz presente nessas áreas por meio da presença militar, no contexto da guerra às drogas. Portanto, não goza de credibilidade para exigir sacrifícios de uma população que não consegue vislumbrar como um inimigo invisível pode ser mais destruidor que as dificuldades enfrentadas diariamente. Quem sobrevive às “balas perdidas” não tem medo do que é silencioso. As dificuldades são agravadas por um presidente da República que ataca o isolamento social em nome da manutenção dos empregos e da atividade econômica..
O discurso de Jair Bolsonaro cai como uma luva para uma população desesperada com a falta de perspectivas. A ordem de ficar em casa soa irônica para quem depende do que consegue conquistar a cada dia. Há cinco anos, o país vive uma crise econômica que ceifou milhões de empregos e empurrou os brasileiros para a informalidade. Mais de 40% dos brasileiros em idade ativa trabalham dessa forma hoje. São pessoas que não têm renda se ficarem em casa, como catadores de lata, vendedores ambulantes e profissionais de limpeza. Para eles, o home office está longe de ser uma opção.
Até agora, a única resposta efetiva do Estado para amenizar o impacto econômico dessas famílias foi a criação de um auxílio emergencial de R$ 600 (cerca de €100, na cotação do início de maio). A iniciativa foi direcionada a trabalhadores informais e pessoas desempregadas. O plano era beneficiar 25 milhões de brasileiros, mas 50 milhões solicitaram o recebimento. Consequentemente, as agências do banco estatal responsável pela distribuição ficaram sobrecarregadas, obrigando os beneficiários a formarem longas filas onde passam dias inteiros. Muitas vezes, sem que a distância de segurança seja respeitada.
Quem chega ao Rio pelo aeroporto internacional Antônio Carlos Jobim pode estranhar a presença de tapumes na via expressa que leva ao Centro da cidade. Estão colocados para esconder dos turistas os “barracos” que cercam a pista. Ali fica a Maré, de onde saiu Marielle Franco, a vereadora brutalmente assassinada em março de 2018. Cerca de 140 mil pessoas vivem no conjunto de 16 favelas, uma população maior do que a de 96,4% dos 5.570 municípios brasileiros. A região é alvo constante de conflitos armados entre facções criminosas e delas com a polícia. Nem a pandemia foi capaz de cessar fogo. Desde que foi decretada emergência no estado do Rio, em 16 de março, dobrou o número de operações policiais em favelas. Apenas na Maré, foram três.
Criada em 1809 para prender escravos fugitivos, a Polícia Militar do Rio de Janeiro é a melhor representação institucional do passado colonial mal resolvido. Embora muitos dos oficiais venham de origens pobres, não demoram a absorver a filosofia da corporação. As favelas são um território sem lei para a PM. Após uma incursão realizada no dia 6 de abril, na Maré, diversos moradores que estavam em quarentena denunciaram a invasão de suas casas pelos policiais. Embora seja ilegal, a prática é comum entre os agentes sob a justificativa de procurar criminosos que se escondem na comunidade.
Nesse cenário de incontáveis dificuldades, a pandemia chegou à Maré, que registrava 39 casos confirmados e 9 mortes pelo coronavírus no dia 6 de maio. Em todo o país, são grandes as limitações para a realização de testes. Portanto, cientistas das mais respeitadas instituições de pesquisa do país estimam que haja até dez vezes mais casos do que o registro oficial contabiliza. Mesmo com a enorme subnotificação, o Brasil se tornou o 6º país com mais mortes no mundo, ao superar a marca de 8.500 mortes. Apesar da provável defasagem do indicador, devido ao baixíssimo índice de testagem em áreas pobres, chama atenção a taxa de letalidade de 23% na região, em contraste com o bairro do Leblon, à beira-mar, onde o índice é pouco maior que 2%.
Há muito tempo, a população da Maré entendeu que não poderia esperar nada do Estado. Em 2007, foi criada a ONG Redes da Maré, por um grupo que integrava a faixa de 0,5% da comunidade que teve acesso ao ensino universitário. A instituição visa à garantia dos direitos dos cidadãos da Maré, bem como seu acesso à cidadania. Um dos projetos bem-sucedidos da Redes é o curso de preparação para o vestibular, um exame nacional que serve como plataforma de ingresso nas universidades. A iniciativa foi determinante na trajetória de Marielle Franco, que cursou Ciências Sociais com bolsa integral na melhor universidade privada do Rio.
A atuação da Redes e organizações parceiras que atuam na Maré tem sido fundamental para garantir o mínimo de dignidade aos moradores da região. O coletivo beneficiou 7 mil famílias da comunidade com a distribuição de cestas básicas e pretendia expandir para 10 mil. Todos os dias, mais de 200 refeições são entregues a pessoas doentes, impossibilitadas de cozinhar, e a dependentes de crack da região. Um dos eixos da força-tarefa de resposta à pandemia é focado na renda das mulheres. Além do grupo que prepara a comida, 35 costureiras confeccionam 12 mil máscaras por semana, distribuídas à população local.
“É estarrecedor constatar que a situação estaria ainda pior se não fosse o nosso trabalho”, afirma Eliana Sousa, diretora e fundadora da ONG. A Redes criou um canal de atendimento online para prestar atendimento à população, a fim de esclarecer dúvidas e oferecer suporte social e jurídico. Até o início de maio, a plataforma registrava mais de 15 mil pedidos de auxílio para os mais diversos problemas, como falta de atendimento na rede pública de saúde, problemas para retirar o auxílio emergencial do governo e violência doméstica, que disparou durante a pandemia.
O amplo alcance da mobilização é garantido pela credibilidade da Redes, que atraiu a atenção de empresas e doadores individuais para a causa. Em outras favelas do Rio, grupos menores fazem o possível para reduzir os danos da tragédia que se avizinha. Para driblar as barreiras de linguagem das recomendações oficiais, coletivos de comunicação usam a criatividade para aumentar a conscientização sobre o problema. Com praticamente todos os leitos de UTI para tratamento de Covid-19 ocupados no Rio, cresce o medo de que uma tragédia sem precedentes se avizinhe.
Sobre o autor:
Criado no Rio de Janeiro, João Soares mantém olhos, ouvidos e coração abertos para não deixar de se impressionar com os encantos e espantos da cidade. É jornalista freelancer, trabalha como correspondente da Deutsche Welle (DW), emissora internacional da Alemanha, e tem reportagens publicadas nos principais veículos de imprensa do Brasil, como Piauí e Folha de São Paulo. Na Alemanha, foi bolsista da Heinz-Kühn-Stiftung em 2017.