SECAS E ÁGUAS: O TEMPO JÁ NÃO É MAIS O MESMO
Tal contexto coloca em cena a preocupação de como tais fenômenos vêm transformando a natureza e vulnerabilizando os tradicionais modos de produção agrícola nessa região. Apresentamos aqui como os agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais do semiárido mineiro percebem estas mudanças em suas práticas de manejo e como vêm desenvolvendo estratégias de segurança alimentar em uma conjuntura de rápidas transformações do equilíbrio climático. Os resultados apontam que, mesmo frente às transformações da natureza e seus eventos metereológicos extremos, existe, ainda, uma alta taxa de agrobiodiversidade manejada nos quintais e nas roças das famílias das comunidades tradicionais, que lançam mão do resgate de sementes crioulas como mais uma das estratégias de diversificação de suas bases alimentares e agroecológicas.
1. O VALE DO JEQUITINHONHA E O NORTE DE MINAS NO CONTEXTO DO SEMIÁRIDO
Em Minas Gerais, o semiárido[1] é compreendido nas regiões Norte de Minas e Vale do Jequitinhonha, onde vivem mais de 3,5 milhões de pessoas. Possui uma área estimada em 103.590 km2 distribuídos em 85 municípios, representando 10,54% da área do Semiárido Brasileiro. Com enorme biodiversidade, o semiárido mineiro abriga os biomas caatinga, cerrado e parte da mata atlântica, o que garante uma rica flora e fauna nativa, que é também retratada pela diversidade de grupos camponeses que se reconhecem na categoria de povos e comunidades tradicionais. Drenado pelas bacias dos rios Pardo, Jequitinhonha e São Francisco, as restrições hídricas e a ocorrência das secas periódicas tem sido historicamente acentuadas pelos diagnósticos governamentais que atribui a estas duas regiões, um quadro elevado de índice de pobreza, estagnação econômica e esvaziamento demográfico, o que contribuiu para que fossem incluídas como parte da área do Polígono das Secas[2], sendo integrados a área de planejamento e ação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE).
Os contrastes do Vale do Jequitinhonha e do Norte de Minas Gerais foram acentuados principalmente no período da ditadura militar implantado no país a partir de 1964. Quando uma série de programas e projetos, de âmbito federal e estadual, foram implementados com o objetivo de “integrar estas regiões na dinâmica da economia nacional, eliminar os bolsões de pobreza e combater os efeitos maléficos da seca”. A intervenção estatal propiciou a consolidação do capitalismo através de políticas desenvolvimentistas, promoveu a modernização do campo e a industrialização de alguns municípios. Redefiniu um quadro econômico a partir do: a) reflorestamento de extensas áreas com a monocultura de eucalipto e pinhos, b) implantação de grandes projetos agropecuários e hidrelétricos, c) instalação de indústrias e d) implantação de perímetros de agricultura irrigada. Um dos resultados deste processo foi a perda de domínio territorial de diversos grupos sociais culturalmente diferenciados, a precarização do modo de vida, a insegurança alimentar, a migração sazonal para outros estados, o assujeitamento às condições exploratórias de trabalho em grandes empresas rurais e a emergência de conflitos territoriais. Tal período denominado genericamente por estes grupos como encurralamento, foi, também, deflagrador de um processo de resistência e mobilização social, principalmente no Norte de Minas, que se constituiu a partir das décadas de 1980/90, com o apoio de uma ampla rede social[3].
2. O TEMPO JÁ NÃO É O MESMO
A degradação climática é percebida pelos agricultores do Semiárido de Minas Gerais, portadores de um legado cultural associado a um vasto patrimônio genético. Patrimônio constituído por uma grande diversidade de espécies e variedades de plantas cultivadas e adaptadas à condições de semiaridez. O que foi verificado por uma equipe de guardiões e guardiãs[4] da agrobiodiversidade, no ano de 2013, através de um projeto financiado pela FAO[5].
De acordo com o depoimento dos agricultores do Norte de Minas, as secas sempre ocorreram com certa regularidade até a década de 1990, o que não comprometia as safras agrícolas. Os ciclos de secas mais severas ocorriam em torno de nove anos, afetando de forma drástica tanto a agricultura quanto as pastagens cultivadas. Entre estes ciclos ocorriam uns dois ou três anos com secas moderadas que promoviam o agravamento dos denominados veranicos de janeiro. Período quando as chuvas previstas para cair no mês de janeiro não vinham, demoravam mais que o costume, caindo apenas no mês de fevereiro ou, ocasionalmente, no mês de março. Nestes casos a produção agrícola podia ser afetada de forma severa, mas de uma maneira geral, as pastagens conseguiam recuperar-se.
Estas secas, severas ou moderadas, desestabilizavam principalmente os sistemas agrícolas tradicionais cujos agroecossistemas eram mais dependentes dos cultivos, ou das famílias que viviam essencialmente da produção agrícola em sistemas de parceria ou em função das pequenas parcelas de terras de que eram possuidores. Porém, em poucos anos, os agroecossistemas conseguiam restabelecer seus processos produtivos, alguns atualizando ou desenvolvendo novas estratégias produtivas, outros reforçados pela resiliência dos sistemas que tinham na diversidade de espécies e variedades cultivadas que eram manejadas, estratégias que eram associadas com o extrativismo, onde espécies da flora e fauna nativa eram utilizadas para diversos fins como alimento humano ou animal, na medicina caseira, no fornecimento de lenha ou para a produção de equipamentos e utensílios domésticos.
Porém, tais agricultores observam que, de quatro safras para cá, o tempo já não é o mesmo, que mudanças vêm ocorrendo com o clima.
O tempo mudou, a temperatura está mais alta, pode ate chover o mesmo, mas a terra seca mais depressa. A chuva já não vem como antes, ela vem de um vez, num tem mais o inverno, a gente vai sentido que estamos perdendo as variedades, plantas sucessoras (nativas) como pé de pequi que morre, não só pela falta de chuva, mas pelo aquecimento. A gente não tem instrumento, mas sente na pele o aquecimento. Com este tempo que eu já vivi, meio século, está se agravando, a gente até esquecia uma grande seca que tudo se recuperava. Eu já vi muita mudança, desde que me entendo por gente eu conheço seca, tinha vinte anos na época, em 1977, 1978, recuperava. Hoje as lagoas estão secando e não consegue a recuperar. (Entrevista concedida por Cristovino Pereira, geraizeiro do Programa de Assentamento Americana, Grão Mogol, MG. 2013).
3. MANEJO DA AGROBIODIVERSIDADE COMO ESTRATÉGIA DE ENFRENTAMENTO À DEGRADAÇÃO CLIMÁTICA
A experiência dos Guardiões e Guardiãs da Agrobiodiversidade junto aos agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais do semiárido mineiro, no período de 15 meses, contribuiu para a avaliação do manejo da agrobiodiversidade em diferentes contextos, ecológicos, culturais e econômicos. O que possibilitou conhecer as espécies e variedades nativas e manejadas pelas famílias, compreender as formas que lidavam com as transformações da natureza e suas percepções sobre as mudanças climática. Conforme tabela a seguir.
Categoria |
Nº Espécies |
|
Cultura |
Nº de Variedades |
||
|
Norte de Minas |
Vale de Jequitinhonha |
|
|
Norte de Minas |
Vale do Jequitinhonha |
Quintais |
36 |
33 |
|
Mandioca |
46 |
59 |
Hortas |
46 |
28 |
|
Feijão |
122 |
50 |
Roçados |
22 |
15 |
|
Milho |
49 |
55 |
Medicinais e Nativas |
126 |
60 |
|
Cana |
33 |
24 |
|
|
|
|
Abóbora |
24 |
18 |
Total |
230 |
136 |
|
Total |
274 |
206 |
Tabela 1 Diversidade de espécies e de variedades encontradas nos sistemas agrícolas de 41 famílias no Norte de Minas e de 45 famílias no Vale do Jequitinhonha. Fonte: CAA, 2014.
No Norte de Minas foram 41 unidades produtivas familiares pesquisadas onde identificou-se 230 diferentes espécies de plantas cultivadas e manejadas em quintais, hortas e roças, incluindo plantas nativas e utilizadas para fins medicinais. No Vale do Jequitinhonha, foram pesquisadas 45 unidades produtivas, onde identificou-se 136 diferentes espécies. Entre estas diferentes espécies, foram identificadas, apenas na categoria de roçado, 274 variedades no Norte de Minas e 206 variedades no Vale do Jequitinhonha. As espécies que apresentaram maior número de variedades são descritas na tabela anterior. Dados que informam a riqueza da agrobiodiversidade ainda encontradas, manejadas e conservadas por famílias de comunidades tradicionais do Semiárido Mineiro. Observa-se que os agricultores familiares desta região detém um vasto patrimônio genético de plantas de espécies cultivadas e nativas e que se configuram como fundamentais para a garantia da segurança e soberania alimentar.
CONSIDERAÇOES FINAIS
A segurança alimentar dos povos e comunidades tradicionais do semiárido mineiro está associado à garantia do acesso e do controle territorial destes grupos sobre suas terras tradicionalmente ocupadas. Territórios disputados e invadidos por setores empresariais e instituições ambientais, com objetivo de realizar grandes projetos econômicos ou projetos de preservação ambiental. O enfrentamento também é local, com as gentes miúdas desenvolvendo e disseminando iniciativas e práticas produtivas de convivência com os ecossistemas regionais e com os processos de mudanças climáticas, cada vez mais incisivos. Neste contexto, o conhecimento das estratégias agroalimentares das comunidades é um dos passos para o processo de luta e preservação do patrimônio genético destes grupos. O manejo da agrobiodiversidade desenvolvido pelas distintas comunidades traz em si a associação entre cultura alimentar e circuitos econômicos. O que pode tencionar negativamente ou positivamente uma maior ou menor densidade de diversidade de espécies e variedades.
Assim, várias estratégias e ações vem sendo realizadas com objetivo de fortalecer as práticas tradicionais que estimulam a preservação local da agrobiodiversidade e a garantia de seus direitos territoriais, através de uma rede sociotécnica de apoio. Uma destas ações vem se traduzindo pela constituição de casas de sementes, familiares ou comunitárias, com objetivo de criar melhores condições de armazenamento e distribuição de sementes, selecionadas a partir do desenvolvimento de técnicas mais apuradas. Iniciativa que está articulada com Casa Regional de Sementes, instalada na Área de Experimentação e Formação em Agroecologia / Instituto Guará, no município de Montes Claros. Esta casa cumpre um papel estratégico na centralização das informações relacionadas com o inventário das variedades locais, identificando as que correm maior risco de perda e, por outro lado, aquelas com maior potencial de adaptação às variações agroambientais. Tal iniciativa propicia o armazenamento das sementes sob risco de perda por um período maior de anos (até 6 anos) e o registro dessas informações serve de base para traçar estratégias de proteção, melhoramento e distribuição das variedades para outras comunidades ou para campos de produção de sementes.
Tais ações permitem que os produtos oriundos da agrobiodiversidade manejada sejam processados e comercializados em condições de abrirem novas frentes no mercado local e regional. Cooperativas agroextrativistas ou associações de base comunitária vêm sendo apoiadas na região e, hoje, produtos provenientes da flora nativa, das roças e dos quintais já são comercializados nos mercados formais e institucionais. Há casos de algumas famílias já produzirem em escala comercial sementes como a do milho, sorgo e feijão, através da CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento)[6]. O fortalecimento dos circuitos econômicos da agricultura sertaneja e os espaços de intercâmbios de sementes, muito comuns, se dá especialmente, nas feiras livres do Norte de Minas e do Vale do Jequitinhonha. Feiras que promovem a sensibilização das comunidades, da sociedade e dos poderes públicos sobre a importância da agrobiodiversidade, se constituindo em espaços privilegiados de troca de sementes, de capacitação e de intercâmbios de experiências.
Finalmente, outra estratégia fundamental refere-se à construção de políticas públicas relacionadas com a legislação de sementes, a regulação de acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e os direitos dos agricultores. Marco legal complexo, que no dizer de Juliana Santilli, vem promovendo um cercamento célere pela Organização Mundial do Comércio, para que os países legislem, cerquem e obstruam os conhecimentos dos agricultores e das comunidades tradicionais a tal ponto que “as sementes passaram a ser propriedade privada de uns, excluídos todos os outros” (SANTILLI, 2009).
Referências bibliográficas:
CENTRO DE AGRICULTURA ALTERNATIVA DO NORTE DE MINAS. Agrobiodiversidade: uso e gestão compartilhada no semiárido mineiro / Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas. – Montes Claros, MG: CAA, 2014
SANTILLI, Juliana. Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. São Paulo: Petropolis, 2009.
[1] O Semi-Árido caracteriza-se pelo regime escasso de chuvas, irregularidade e concentração das precipitações pluviométricas num curto período de cerca de três meses, durante o qual ocorrem sob a forma de fortes aguaceiros, de pequena duração. Fonte: http://www.codevasf.gov.br/osvales/vale-do-sao-francisco/poligono-das-secas
[2] O Polígono das Secas compreende uma divisão regional efetuada em termos político-administrativos dentro da zona semi-árida, sujeito a períodos críticos de prolongadas estiagens. Recentemente as Áreas Susceptíveis à Desertificação –SAD, passaram a ser denominadas por força de convenções internacionais (Convenção de Nairobi), de SemiÁrido Brasileiro. Fonte: http://www.codevasf.gov.br/osvales/vale-do-sao-francisco/poligono-das-secas.
[3] Dentre eles: Sindicatos de Trabalhadores Rurais, Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA-NM), pastorais como o CIMI e CPT, universidades, entidades civis como Misereor, PPM, HEKs e Action Aid.
[4]São assim denominados as lideranças de comunidades tradicionais que são também responsáveis pela manutenção em seus sistemas agrícolas de uma ampla gama de diversidade de espécies cultivadas.
[5] A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) financiou em 2013 o Projeto Uso e Gestão Compartilhada da Agrobiodiversidade pelos povos e comunidades tradicionais do Semiárido de Minas Gerais como estratégia de segurança alimentar e de redução dos riscos climáticos, executado pelo CAA NM, através da Rede de Agrobiodiversidade do Semiárido Mineiro.
[6] A CONAB tem um programa de aquisição e distribuição de sementes crioulas denominado de PAA Sementes, o que contribui com a amplificação da diversificação de variedades junto a agricultura familiar.