A crise da água

Entrevista com a arquiteta Marussia Whately, coordinadora da Aliança pela Água, sobre a crise da água especialmente nas regiões do sudeste.
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A crise da água
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A arquiteta Marussia Whately, 41 anos, nasceu na beira da Guarapiranga, um dos mananciais de água de São Paulo poluídos por esgotos e pela ocupação urbana desordenada. Arquiteta e urbanista de formação, tornou-se especialista no tema, crítica da inação do poder público e ativista de uma rede de organizações que lideram este debate, hoje no topo da agenda brasileira. A seca e a incapacidade de lidar com o estresse hídrico atingiu duramente regiões do Sudeste, principalmente São Paulo, e o cenário crítico parece longe de melhorar.

Se as cenas bizarras do passado recente -- gente lavando calçadas e carros aos domingos, de mangueira na mão, usando água potável indiscriminadamente – já não existem, a crise tem feito com que a cidade mais rica do país sofra um retrocesso civilizatório, na visão de Marussia, que trabalha com água há 20 anos.

Em 2009, ironicamente, ela viu o programa que cuidava no Instituto Sociombiental, o ISA, ser fechado por falta de financiamento. Hoje coordena a Aliança pela Água, coalizão de 50 organizações como WWF, Greenpeace, TNC, SOS Mata Atlântica e ISA a movimentos de defesa do consumidor, de moradia e coletivos de juventude. O problema da água na cidade afeta a todos, em graus diferentes.

Criada no final de outubro, a Aliança procura discutir e fazer propostas em relação à crise, reivindicar acesso à informação, prestar serviços de orientação à população. “São Paulo vai virar uma daquelas cidades em que os gringos recebem recomendação ‘se for para lá leve água’, ‘ali não beba água da torneira’, diz Marussia, e não parece estar de brincadeira. A seguir, trechos da entrevista:

 



Como está a crise da água?
Marussia: Existem hoje no Brasil diferentes regiões passando por situação de crise, são mais de 140 municípios com racionamento. O Nordeste convive com uma situação que se arrasta há anos, de estiagem prolongada. Há municípios em Pernambuco que ficam 17 dias sem água e 13 com. E há o quadro no Sudeste. As razões da crise não são as mesmas.


Quais as diferenças?
Marussia: O Nordeste é a região semiárida do Brasil, com menor disponibilidade de água, que já tem um problema histórico e uma seca persistente. Também ali há uma deficiência maior dos serviços de saneamento e segurança hídrica. No Sudeste do Brasil, em especial no Estado de São Paulo, houve um agravamento das condições de estiagem em 2014. Foram três anos com menos chuva e um ano com muito menos chuva, 2014. Há uma incapacidade ainda no Brasil de dar resposta para este tipo de situação.


Qual seria uma boa resposta?
Marussia: Em quase nenhum de nossos instrumentos de gestão da água se pensou em um quadro de escassez por causa de estiagem. Temos uma politica nacional de recursos hídricos com resultados, comitês de bacia e planos, temos uma política nacional de saneamento que prevê planos municipais de saneamento com conselhos e regras, mas nenhum destes instrumentos analisa e propõe medidas de urgência para uma situação dessas.

Governança falha, é isso o que você está dizendo?

Marussia: Temos desde problemas de governança até o fato de, à exceção do Nordeste, todo o resto do Brasil não estar acostumado a lidar com estiagem. São muitas questões. No caso de São Paulo, por exemplo, a gestão da crise fica na mão da Sabesp, a companhia de saneamento, cujo interesse é vender água. Mas ela não é gestora, é prestadora de serviços. Neste caso específico, o governo do Estado, que seria a principal liderança a assumir a gestão da crise, teve muitas falhas. A primeira foi a negação da crise ao longo de 2014, uma estratégia com impacto relacionado às eleições, de não querer lançar medidas impopulares como o racionamento.

Também em função da Copa do Mundo.

Marussia: Claro. Não foram adotadas medidas efetivas de economia de água e na hora em que se disse que era preciso fazer economia, a situação das represas já era muito ruim. Esta ineficiência de regras é um alerta muito ruim para o Brasil, porque os eventos climáticos extremos vieram para ficar. 

Quantas pessoas estão sob este impacto? Quantas represas afetadas?


Marussia: Mais da metade do Estado, quase 30 milhões de pessoas. São várias represas. A situação mais crítica é a das seis represas que formam o Sistema Cantareira, que estão parte em Minas Gerais e parte em São Paulo. Em condições normais, abastecem 14 milhões de pessoas. O sistema Cantareira é o exemplo maior dessa falta de governança que temos hoje. Não se previa o que fazer quando uma situação de escassez acontecesse. Isso significa se preparar para a crise, porque tomar decisão na crise é muito mais difícil. Na gestão da água temos também um problema de transparência de informações.

Melhorou, com as chuvas do verão?

Marussia: Choveu 1,5 mês, que não repôs nem a água necessária para não criar impacto nas condições ambientais da represa de repor a água. A situação é muito grave, agora acaba o período de chuvas no Sudeste. O ano de 2015 será pior que 2014.

O que vamos fazer?

Marussia: Vamos transformar uma exceção em regra, usar pelo segundo ano essa água do limite, e isso faz com que se deixe as represas muito mais secas. Vamos ter uma quantidade enorme de solo exposto, solo que deveria estar debaixo da água. As projeções mais otimistas dizem que vai levar três anos para a recuperação do sistema. Cinco anos são as estimativas mais realistas.   

A crise mobiliza a sociedade?

Marussia: Mobiliza bastante, as pessoas sentem de diferentes formas. A opção do governo foi não declarar que havia uma crise, criar um bônus para quem economizasse – o que gerou uma economia pequena -- e adotar a redução de pressão de água na rede. Em determinados horários, os técnicos da Sabesp diminuem – manualmente, em alguns lugares -- a quantidade de água que passa pelos canos. Isso é um rodízio de água não declarado.

Qual o resultado?

Marussia: Essa medida teve um benefício grande porque evita que se perca muita água em vazamentos. A Sabesp perde 30% da água que retira de todos os sistemas. Isso daria para abastecer seis milhões de pessoas, o Rio de Janeiro, é muita água perdida! É um absurdo. Estamos em uma região com dificuldades de água, porque é uma região de cabeceiras onde vive muita gente e onde poluímos os rios.

Como a população sente a crise?

Marussia: A medida principal adotada foi a redução de pressão na rede. Isso possibilitou que a Sabesp retirasse menos água das represas. Mas a redução de pressão vai ter impactos diferentes, dependendo de onde se vive na cidade. Quem mora em lugares altos sente mais. Quem vive em prédios, talvez nem perceba o problema se tiver uma caixa d’água grande. Mas na periferia, para quem não tem caixa d’ água, imagine: falta água todo dia. Essa redução de pressão é uma medida técnica, mas não considera – e esta é uma grande falha na gestão da crise -- que é muito injusto algumas pessoas terem água e outras não. Também não considera que existem muitos grupos vulneráveis que não podem sofrer o impacto da medida técnica.

Quem?

Marussia: Moradores de rua do centro da cidade.

A falta de chuva é consequência do desmatamento?

Marussia: Não é possível falar de correlações científicas assim ainda, há uma série de ressalvas. Mas há uma relação direta com a produção de umidade. Em 2014 houve um bloqueio da vinda da umidade, que não chegou ao Sudeste. O que causou esse bloqueio, ninguém sabe explicar. O fato é que algo diminuiu a capacidade de água de circular. O que a gente pode dizer, com certeza, é que o desmatamento tem impacto em escala continental, regional e local. Em torno às bacias do sistema Cantareira, por exemplo, só sobrou 20% de vegetação. É uma região muito desmatada. A falta de vegetação, com certeza, contribuiu para que o sistema fosse muito menos resistente à estiagem. O solo sem vegetação seca mais rápido, não guarda umidade.

A revitalização das represas resolve o problema?

Marussia: É fundamental. Não resolve a curto prazo porque floresta leva tempo para crescer. Mas iniciar essa ação agora é fundamental para que, no médio prazo, existam melhores condições ambientais nas represas e elas sejam mais resilientes a eventos climáticos extremos.

As represas são muito poluídas?

Marussia: As represas que abastecem São Paulo são urbanas e há as rurais. As do Cantareira são rurais, não têm muita ocupação urbana, mas há muito desmatamento e pastagens, é um outro tipo de contaminante. Não em altos níveis, mas, obviamente, na hora em que se tem menos água, a concentração aumenta, ainda mais quando se pega água do fundo da represa. Lembre que o Brasil usa indiscriminadamente agrotóxicos e fertilizantes e que eles acabam indo para a água. Nas represas próximas à cidade, como Billings e Guarapiranga, há grande ocupação urbana. Ali tem quase 2 milhões de pessoas morando, sem saneamento adequado. É um problema gravíssimo.

Quem consome a água? Qual o papel da agricultura, das indústrias?

Marussia: Na Bacia do Alto Tietê, que abastece a região metropolitana de São Paulo, grande parte do consumo é doméstico e industrial. No Cantareira há usos mais rurais. Mas esta não é uma conta fácil, faz parte dos problemas de gestão. A gente não monitora isso bem. O dado oficial de previsão de consumo de água no Brasil é da Agência Nacional de Águas (ANA), de 2010. No Brasil vem antes irrigação, abastecimento animal, depois o abastecimento urbano e, por último, a indústria. Mas cada bacia hidrográfica tem um tipo de ocupação que vai determinar um tipo de consumo.

Consumir menos agua resolve o problema?

Marussia: O brasileiro consome em média, 140 litros de água por habitante/dia. Na Califórnia devem ser 600. Desperdiçar menos água e sujar menos água resolveria mais. Estamos em uma região que tem problemas de balanço hídrico, o sistema tem capacidade de produzir menos água do que a demanda. Mas dentro desta demanda tem um tipo de uso que precisa mudar. A Sabesp perde muita água. Se diminuísse a perda em 10%, teríamos um adicional de água equivalente a 2 milhões de pessoas.

Com a crise teve diminuição no consumo per capita?

Marussia: Sim, de 180 litros por habitante/dia para 140, como média. É um dado aproximado.

Se você pudesse simplificar: o que tem que mudar?

Marussia: A crise traz uma série de aprendizados. O Brasil precisa construir uma nova cultura de cuidado com a água. Cuidar das fontes de água nas áreas urbanas e rurais, tratar e reutilizar água sempre que possível, garantir que o meu uso não comprometa o seu, e garantir que a cobrança pela água seja eficiente e justa. Nem cobrar demais para quem tem menos, nem cobrar de menos para quem tem mais. E reduzir as perdas, ter uma gestão mais eficiente.

Agora o tema subiu na agenda, pelo menos.

Marussia: Sim, mais pela dor do que pelo amor. Mas é um assunto que vem pra ficar. Esta não é uma crise passageira.

Além de São Paulo, Rio e Minas sofrem também?

Marussia: Sim. Mas Minas é hoje o Estado que está se preparando melhor para lidar com a crise. Está criando metas e regras, até metas de transparência. O Estado do Rio vai mal, é menos estruturado em termos de saneamento e as represas estão em situação bem grave.

São Paulo brigou pela água com estes outros Estados.

Marussia: Agora vão fazer uma obra de vai custar uma grana daquelas e quando terminar, não necessariamente se terá água para trazer de um lugar ao outro.

Qual o debate que deveria ser feito?

Marussia: O que a sociedade brasileira quer: fazer mais obras ou usar melhor a água que tem? Seria mais a linha das políticas de conservação da água.

Como a falta de água se relaciona à explosão nos casos de dengue

Marussia: A dengue está relacionada diretamente com a falta de água. Os bairros que têm mais dengue em São Paulo são os que primeiro ficaram sem água. As pessoas estão armazenando a água da forma que podem e assim multiplicamos em milhões os focos de mosquito. Também há muita entrada em Pronto Socorro de pessoas com problemas relacionados a questões com água. O acesso a água é um indicador de IDH. Estamos fazendo um retrocesso civilizatório. São Paulo vai virar uma daquelas cidades em que os gringos recebem recomendação “se for para São Paulo leve água”, “ali não bebam água da torneira.”

 

Daniela Chiaretti é repórter especial de ambiente do Valor Econômico