Brasil, ou a revolta no paraíso?
Taina Mansani
A imagem que custou 0,20 centavos. Esse foi o valor no aumento das tarifas de ônibus e transporte público em São Paulo que colocou em cheque a imagem de potência em desenvolvimento do Brasil e entrou para o história como o dia em que o “paraíso se revoltou”. Os recentes avanços econômicos pautados na renda e consumo que levaram cerca de 30 milhões de pessoas à classe média[1]faziam crer que tudo ia bem, até as manifestações de junho implodirem. A persistência de problemas estruturais graves – sistema educacional elitista, violência policial nas periferias, criminalidade, monopólio midiático, sucateamento dos serviços públicos de sáude e transporte mostraram que, para além dos avanços na economia, o Brasil precisa mais do que o desenvolvimento pautado no consumo. De fato, o Movimento Passe Livre - MPL, que encabeçou as primeiras manifestações de junho contra o aumento das tarifas de transporte público, vinha chamando há anos uma série de passeatas. De isolados esquerdistas, com os protestos esse grupo passou a ser ouvido, conquistando a decisão inédita do Governo em recuar no aumento das tarifas. Abrindo-se, inclusive, possibilidades para se investigar máfias e cartéis nos transportes públicos na cidade. Em poucos dias, outras pautas surgiram com o movimento se espalhando pelo país, levando milhões de pessoas às ruas. Supreendentemente, os protestos no país do futebol, quem diria, provocaram até à questionamentos ao governo sobre os gastos com a Copa do Mundo, a ser sediada em 2014. “Cala boca Pelé”, foi a resposta nas redes sociais ao pronunciamento do ídolo do futebol, no qual, por vídeo, pedia ao povo que esquecesse as manifestações e “apoiasse a seleção”. Pouco a pouco, de país pouco acostumado a protestar a um dos assuntos mais comentados pelo mundo, o Brasil entrou no olho do furacão. Com narrativas a serem disputadas, a mídia tradicional no país, acostumada a criminalizar os movimentos sociais, desde sempre qualificando manifestantes como “baderneiros”, e ocupações sociais como “invasões”, viu-se obrigada a mudar de discurso. Mas por que agora?
Violência policial x encenação midiática
Em meados de junho, durante os primeiros dias de protestos, o jornal Folha de São Paulo estampava em sua capa “Governo de São Paulo diz que será mais duro contra vandalismo”. Em 13 de Junho, dia marcado pelos atos brutais da polícia contra manifestantes e jornalistas, a repórter que cobria o evento para o mesmo jornal, usava identificação de imprensa, e não gravava a cena, foi pega de surpresa ao ver o policial a mirar e atirar. “Tomei um tiro da cara”, postou no Facebook. Na manhã seguinte ao inicidente com seus repórteres, o mesmo jornal então publicou: “Polícia reage com violência e SP vive noite de caos”.
A arbitrariedade da polícia contra os jornalistas e manifestantes e a repercussão dos protestos iniciados em São Paulo evidenciaram mais do que a violência em si. Mostraram que a cobertura da mídia tradicional – no Brasil e no mundo - não chega do mesmo modo nas periferias, embora lá a polícia há muito tempo reprima com brutalidade. O caso do pedreiro Amarildo Dias de Souza, conhecido nacionalmente por seu sumiço inexplicável durante uma batida policial em 14 julho de 2013 na Favela da Rocinha (Rio de Janeiro), e as mortes decorrentes da ação da polícia especial Bope na Favela da Maré, deixaram claro o que os movimentos sociais passaram a divulgar paralelamente aos protestos: “a Polícia que reprime no asfalto é mesma que mata na favela”.
Mas se durante os protestos a violência policial da qual alguns repórteres dos maiores veículos de comunicação do país foram vítimas explica sua projeção; por outro lado, deve-se ressaltar a cobertura dos fatos pelas mídias alternativas. Com blogs, posts no nas redes sociais e vídeos, ativistas digitais mostraram, de maneira inédita, os protestos “por dentro”. Veiculando conteúdos em tempo real, com críticas talvez jamais reproduzidas pela imprensa tradicional, as redes se tornaram um novo “termômetro”, acompanhado inclusive pelos grandes veículos, que, ao perceberem a amplitude dos protestos, passaram a re-articular suas opiniões e a disputar as narrativas.
Em um dos noticiários noturnos de maior audiência do país, o Jornal Nacional, da TV Globo, o comentarista Arnaldo Jabour se questionava sobre o que poderia causar tanto ódio aos manifestantes. Os protestos, segundo ele, seriam “coisa de classe média e não de pobres, e que as reais vítimas eram os policiais...”, concluindo que tudo era fruto de uma “imensa ignorância política… burrice misturada a um rancor sem rumo”, acreditando talvez que as conquistas democráticas nos últimos séculos não fossem frutos de lutas políticas da população nas ruas. Poucos dias depois, o comentarista corrigiu a opinião publicamente, pois afirmou ter se equivocado em sua análise inicial.
O comentarista Arnaldo Jabour não foi o único sujeito de encenações ou re-articulações midiáticas durante os protestos de junho no Brasil. José Luiz Datena, apresentador do Programa “Brasil Urgente!”, da TV Bandeirantes, noticiava imagens de manifestantes no centro de São Paulo (obtidas pelos helicópteros da emissora no local) quando foi vítima ao vivo da sua própria pergunta. Criticando os manifestantes e os taxando de baderneiros, o jornalista propôs a enquete: “Você é favor desse tipo de protestos?” Inesperadamente, os números cresceram exponencialmente para o sim. Em meio ao constrangimento, o jornalista procurou reformular a frase, “você é a favor do protesto com baderna?” novamente, a maioria respondeu sim.
Os exemplos mostram como durante os protestos a mídia tradicional fez questão de abordar superficialmente os fatos, acreditando numa massa de ignorantes que não podiam compreender o que acontecia. Quando as manifestações chegaram a ponto quase incontrolável, com carros das emissoras sendo queimados e hostilização dos jornalistas da imprensa tradicional, a estratégia passou a ser, então, a inserção de novas pautas ao movimento. Em um dos artigos mais lúcidos sobre os protestos “Brasilianischer Frühling oder Putsch von rechts?”[2]Antonio Martins pontuava como, para esvaziar a reivindicação de direitos e igualdade, e seu caráter “perigoso” de crítica social, a direita procurou inserir aos protestos uma luta genérica “contra a corrupção”. Ao mesmo tempo em que voltava o movimento contra os governos de esquerda para ocupar um possível vácuo de representação política, os conservadores também conclamavam um certo pacifismo, discernindo os “bons” dos “maus manifestantes” – esses últimos, os vândalos e bárbaros a destruir o patrimônio público.
É evidente que a cobertura da mídia alternativa confrontou o monopólio da comunicação exercido pelas grandes emissoras do país. Mais do que a discutida, a crise do jornalismo tradicional face a potencialidade das novas mídias é apenas um fator em que, no contexto dos protestos de junho no Brasil, a notoriedade obtida pelas transmissões ao vivo e as críticas à grande mídia trouxeram imagens de um país menos pacífico. Enfim, um país “diferente”.
Os donos da mídia
O controle de mídia no Brasil é exercido por grandes redes privadas. As maiores redes de televisão são a TV - Globo, SBT e Band, ligadas direta ou indiretamente aos principais veículos de comunicação no país. Se traçado um perfil desses grupos de comunicação, é nítido que por trás da cobertura superficial dos fatos estão os interesses em se manter o status-quo de uma agenda neoliberal. Ao monopólio da comunicação, exercido pelas empresas privadas, soma-se as relações promíscuas entre políticos, elites e grupos de mídia. Pesquisas, como a realizada pelo projeto Donos da Mídia descobriram que, em apenas em 2008, 271 políticos eram sócios ou diretores de 324 veículos de comunicação[3].
Apenas um exemplo memorável e com grande repercussão é o caso da família Sarney. A Governadora do Estado do Maranhão, Roseana Sarney (direita, PMDB- MA), filha do ex-presidente da República José Sarney, teria usado entre os anos de 2004 e 2005 a TV Mirante (afiliada à Rede Globo de televisão desde 1991, da qual é proprietária) e o jornal O Estado do Maranhão para atacar um ex-aliado político. Roseana é também alvo de outras denúncias de corrupção em órgãos públicos. Em 2002, R$ 1.340.000,00 (hoje, cerca 440.000 EUR) não-declarados foram apreendidos pela Polícia Federal na empresa Lunus Participações e Serviços Ltda., da qual Roseana era sócia com o marido. Durante os protestos de junho no Brasil, e à hostilização por manifestantes à família Sarney, foi divulgado na internet e nas redes sociais que uma manifestação com cerca de 30.000 mil pessoas ocuparia a TV Mirante no Maranhão.[4]
Brasil e sua imagem
No século XIX, os relatos sobre o Brasil produzidos pelos artistas viajantes europeus contribuíram de maneira ímpar para construir a imagem do país como o paraíso das belezas tropicais. Caracterizadas pela visão eurocêntrica de mundo, os retratos das belas paisagens quase sempre camuflavam, ou distorciam, o paradoxo da escravidão africana nos trópicos. Nos anos 40, o livro “Brasil - país do futuro”, escrito por Stephen Zweig, atingiu projeção internacional ao propagar o ideario de um país “capaz de harmonizar os contrastes e ser uma solução para um mundo sem guerras”. Ao mesmo tempo, os críticos consideravam o livro controverso, pois veiculava a imagem positiva do país em plena Ditadura Vargas. Na década de 1970, durante os anos mais violentos da Ditadura Militar (1964-1985), os militares brasileiros usavam a propaganda do “Milagre Econômico”, enquanto pessoas eram torturadas nos porões da Ditadura. Tudo, no país do futebol e do carnaval.
Em tempos recentes, de país em desenvolvimento a futura potência mundial, o Brasil procurava mostrar a imagem de que tudo ia bem, até que os protestos de junho implodiram confrontando esferas de poder. A luta que começou contra o aumento de R$ 0,20 centavos nos transportes colocou em cheque o imaginário de uma população pacífica. As manifestações eclodiram simultaneamente à Copa da Confederações, apenas um ano antes do Brasil sediar pela primeira vez a Copa do Mundo, e pegaram de surpresa jornalistas que cobriam o evento no Brasil para todo o mundo. Noticiado pela televisão alemã ZDF, um dos slogans nas chamadas sobre o país durante os protestos passou a ser: “Sonne, Samba und Protest – Brasilien auf dem Weg zur WM”.
“Ein Volk erhebt sich gegen die Fifa“, publicou o semário Die Zeit[5] em 21 de junho, acrescentando, “Danke Brasilien! Was Südafrikaner 2010 und Deutsche 2006 nicht wagten, übernehmen nun die Brasilianer”, em referência aos gastos para Copa do Mundo, e aos magnatas da FIFA lucrando arbitrariamente. Mas, uma das primeiras notícias na Alemanha (no início de Junho) vieram do Jornal online Der Spiegel. No artigo, se falava em “Krawalle in Brasilien: Straßenschlachten wegen sieben Cent” sem ponderar que o real o motivo dos cerca de 0,7 centavos de Euro (0.20 centavos de Real) estava na insatisfação popular, em um modelo de transporte ineficiente, e nas dificuldades da população em se locomover diariamente. Nos dias posteriores, e com a dimensão assumida pelos protestos, um dos artigos publicados pelo mesmo veículo trazia o título “Landesweite Demonstrationen: Hunderte Verletzte bei Protesten in Brasilien”, com jornal online se mostrando mais sensível aos acontecimentos e à dimensão dos fatos. "Es sind die größten Proteste seit Jahrzehnten: Mehr als eine Million Menschen haben in Brasilien gegen Korruption und hohe Lebenshaltungskosten demonstriert", escreveu o Der Spiegel.[6]
Acentuando que os protestos mostraram um sistema em crise, o jornal Die Welt[7] apontou em um dos seus artigos as contradições do sistema político brasileiro, como o clientelismo e a corrupção - “Brasilien braucht dringend eine Politik – und Parteienreform”. Em meios aos protestos, a reforma política foi um dos 5 pactos propostos em pronunciamento pela presidenta Dilma Rousseff para o Brasil, que convocou um plebiscito popular para o tema, porém depois voltou atrás. O principal motivo: o congresso considerou inconstitucional a aplicação de um plebiscito para Reforma Política sem que a população estivesse suficientemente esclarecida para decidir. Ainda que mostrando possibilidades de diálogos face à manifestações que chegavam a um ponto incontrolável, o pronunciamento da presidenta e a proposta de reforma política expôs um dilema que o Brasil arrasta há décadas. Agendas políticas mesmo bem intencionadas precisam ser aprovadas por um congresso pontilhado de interesses individuais e divergentes, na maioria dos casos bem longe de representar o interesse da sociedade.
É por isso que, de 0,20 centavos de real à proposta de reforma política, os protestos de junho alcançaram dimensões jamais imaginadas, mostrando problemas estruturais graves. A disputa de narrativas pela mídia durante os acontecimentos provaram apenas tratar-se de uma luta política, em que os problemas estruturais do país estão longe de serem retratados, já que a imagem parcial e monópolio da informação são a outra face de uma sistema elitista e excludente. Contrariando, porém, a ideia de um país submisso, longe da grande mídia e mais ruas e nas redes socias, os protestos, os abriram as fissuras de uma representação em crise, e provaram, por poucos centavos, que o Brasil ainda está longe do “paraíso”.
[1] O estudo A Nova Classe Média: O Lado Brilhante dos Pobres, FGV (Fundação Getulio Vargas), 2010 foi feito com base na Pnad (Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio) de 2009, divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). De acordo com o estudo a chamada classe média passou a ser composta por 94,9 milhões de pessoas, representando 50,5% da população brasileira, representando assim a maioria da população com poder de compra no Brasil.
[2] http://www.rosalux.de/publication/39690/brasilianischer-fruehling-oder-putsch-von-rechts.html
[3] www.donosdamidia.com.br (acesso em 12/09/2013). O Projeto Donos da Mídia reúne dados públicos e informações fornecidas pelos grupos de mídia para montar um panorama completo da mídia no Brasil. Sobre a pesquisa mencionada consultar também:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed712_donos_da_midia_lideram_corrida_em_salvador_sao_paulo_e_curitiba. Embora a Constituição Federal de 1988 proiba políticos de serem donos de concessões públicas, não os proibe de serem “sócios”, daí a brecha encontrada para articulação de interesses através dos meios de comunicação.
[4] Sobre os protestos contra a TV Mirante http://blog.jornalpequeno.com.br/ricardosantos/2013/06/24/em-panico-funcionarios-do-sistema-de-comunicacao-da-familia-sarney-pensaram-que-seriam-agredidos/ e http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/ma-com-15-mil-protesto-hostiliza-sarney-e-tem-depredacao-da-prefeitura,89a12e5849f5f310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html
Sobre as denúncias de corrupção contra Roseana Sarney, o fato foi publicado em diversos veículos. Alguns exemplos: http://www.istoe.com.br/reportagens/16441_O+CALCANHAR+DE+ROSEANA http://www.camara.gov.br/internet/ordemdodia/integras/22112.htm
http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,mpf-pede-investigacao-de-roseana-sarney,595920,0.htm
[5] http://www.zeit.de/sport/2013-06/brasilien-proteste-fifa-dankev
[6] http://www.spiegel.de/politik/ausland/rio-und-sao-paulo-strassenschlachten-in-brasilien-a-905693.htmlv / http://www.spiegel.de/politik/ausland/bei-protesten-in-brasilien-wurden-hunderte-menschen-verletzt-a-907038.html
[7] https://www.google.de/search?q=Die+Protestbewegung+offenbart+eine+System-Krise&ie=utf-8&oe=utf-8&rls=org.mozilla:de:official&client=firefox-a&gws_rd=cr&ei=OGwvUsmxOcav4QSql4CQCA