Rio +20: Resistir ao ambientalismo de mercado e fortalecer os direitos e a justiça socioambiental

O Potencial da Rio + 20 O Rio de Janeiro sediará em junho de 2012 um evento que poderá simbolizar o encerramento de um ciclo e o início de outro. Por ocasião da Rio + 20, espera-se que seja feito um balanço abrangente do ciclo de conferências das Nações Unidas dos nos 90, iniciado com a Rio 92 e que incluiu conferências sobre população, direitos humanos, mulheres, desenvolvimento social e a agenda urbana.
| von FASE

Também em 2012, o Protocolo de Kyoto terá chegado ao seu limite de vigência. A Conferência das Nações Unidas sobre esenvolvimento Sustentável/Rio+20 se propõe a debater três questões: avaliação do cumprimento dos compromissos acordados na Rio 92, economia verde e arquitetura institucional para o desenvolvimento sustentável.A Rio + 20, portanto, tem o potencial de ser um momento ao mesmo tempo de balanço das conquistas e derrotas das últimas duas décadas e também de identificação de uma nova pauta de lutas à frente.

O Contexto da Rio + 20: fragilidade do sistema da ONU num cenário de múltiplas crises

Os seres humanos e o planeta estão vivenciando múltiplas crises que põem em questão o futuro da humanidade. Nem as Nações Unidas, nem os governos, aprisionados ao passado, estão agindo em consonância com a gravidade do processo de deterioração acelerada em curso. As organizações da sociedade civil global, que vêm se reunindo de forma autônoma em espaços como o Fórum Social Mundial e nos processos e lutas permanentes que ligam o local e o global, em eventos paralelos às conferências das Nações Unidas, às reuniões do G20 e das instituições financeiras multilaterais, e que se reunirão no Rio de Janeiro durante a Conferência da Rio+20, estão desafiadas a revigorar e a continuar a luta por outro mundo e pressionar os governos e as instituições do sistema internacional a atuarem de forma efetiva. A constituição desse movimento global se intensificou a partir do Fórum Global, em particular do Fórum Internacional das ONGs, realizado paralelamente à Rio 92, e, em 2012, a avaliação do estado das lutas e conquistas globais também estará em pauta.

A Conferência realizada em Johanesburgo pelo aniversário de dez anos da Rio 92, as COPs, a insignificância do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, e a impotência da ONU em fazer face às catástrofes humanitárias mostram a incapacidade do atual sistema internacional para enfrentar os desafios que o futuro impõe e para fazer cumprir os acordos do ciclo de conferências desde a Rio 92.
As Conferências das Partes (COPs) encarregadas de implementar as decisões das Convenções da Biodiversidade, da Desertificação  e das Mudanças Climáticas demonstram essa afirmação. A biodiversidade é associada historicamente aos povos indígenas, às populações tradicionais e ao campesinato, mas apesar de um reconhecimento em tese do seu papel, eles estão sendo sistematicamente espoliados dos seus direitos, chegando mesmo a serem expulsos dos seus territórios. Cada vez mais, o enfrentamento da desertificação está aquém dos desafios que o tema apresenta, o mesmo ocorrendo em relação às migrações forçadas. E a crise climática, por sua vez, está sendo apropriada pelo mercado para gerar lucros. O balanço dos compromissos assumidos nas conferências de direitos humanos, mulheres, desenvolvimento social e Habitat também não deixam dúvidas sobre a distância entre declarações de compromissos e realidade.

Do desenvolvimento sustentável à economia verde: a reciclagem de um modelo insustentável


Numa contradição insanável, a Conferência da Rio 92, ao mesmo tempo em que reconhecia a grave crise ambiental do planeta – em particular no que diz respeito à biodiversidade e ao clima – e a responsabilidade dos países industrializados, afirmava a primazia da economia como motor do desenvolvimento, batizado então de “sustentável“. De maneira sub-reptícia, os governos presentes e a própria ONU reconheciam o poder da economia capitalista acima da política, ou melhor, como condutor da política. Consagraram o “desenvolvimento sustentável”, termo rapidamente apropriado pela economia dominante e assim esvaziado do seu potencial reformador.
Em substituição ao esvaziado termo desenvolvimento sustentável, a agenda da Rio+20 busca apresentar a “economia verde” como uma nova fase da economia capitalista. Através do mercado verde, um novo ambientalismo, fundado no business verde, propõe a associação entre novas tecnologias, soluções pelo mercado e apropriação privada do bem comum como solução para a crise planetária. Esta reciclagem das clássicas formas de funcionamento do capitalismo, de seus modos de acumulação e expropriação, constitui-se em um estelionato grave de conseqüências profundas. Dá um novo fôlego a um modelo inviável e oferece como utopia somente a tecnologia e a privatização. Impede tomar consciência da crise que enfrentamos e dos verdadeiros impasses que está vivendo a humanidade. Portanto, impede que novas utopias sejam formuladas e alternativas civilizacionais construídas.
Devemos questionar o que o desenvolvimento sustentável e a economia verde têm a contribuir para a proteção e a garantia dos direitos humanos. O mercado deixa a sua defesa aos governos e à ONU, que mantém a retórica dos direitos humanos, incluindo no seu campo o direito à água; mas, sem meios nem vontade política para implementálos. Voltam-se cada vez mais para intervenções humanitárias, que tendem a substituir a promoção dos direitos. Tendo poder apenas normativo, os compromissos acordados na esfera da ONU ficam soterrados pelo poder de sanção e retaliações de instituições como OMC, FMI e Banco Mundial. Diante da incapacidade da ONU, de um lado, e do poder das instituições multilaterais que servem aos interesses das corporações, do outro, o resultado é que governos e políticas públicas e democráticas perdem cada vez mais espaço para acordos e políticas que entregam nosso futuro à iniciativa privada e, na sua mais nova versão, à economia verde.
O mundo está subordinado à força hegemônica do capital. Este não tem outra visão de futuro do que a promessa de um desenvolvimento ilusório, porque predador do meio ambiente, violador dos direitos humanos e excludente de países e populações. A ideologia do desenvolvimento, entendido como crescimento econômico que alimenta a expansão de padrões insustentáveis de produção e consumo, penetrou profundamente no imaginário e na cultura de todas as classes sociais, no Norte e no Sul, orientando inclusive a ação de governos eleitos em países do Sul com o mandato de desencadearem transformações, mas que, no entanto, não conseguem construir uma nova correlação de forças capaz de alavancar mudanças e também não conseguem acumular reflexão e força política na direção de novos paradigmas.

Os Estados dominantes, ao longo de dois séculos, e com mais intensidade, nas últimas décadas, promoveram a globalização da economia. As guerras coloniais, a ocupação de territórios e a escravidão foram substituídas hoje por acordos bilaterais e instâncias multilaterais que cumprem o mesmo papel de submeter e subordinar os paises do Sul ao seu poder. Assim, impuseram ao mundo um modelo, técnico e econômico, de produção e de consumo sustentado pela exploração do trabalho, a sobre- exploração dos recursos da natureza e a exploração de outros países.
Se a exploração humana e de países pode se perpetuar apesar dos gravíssimos conflitos resultando na exclusão, a exploração da natureza mostra seus limites e começa a afetar a reprodução do capital, direta e indiretamente, quando doenças, diminuição da qualidade de vida e catástrofes começam a levantar suspeitas e minar a base de sustentação do modelo. A crise que emergiu em 2008, inicialmente no sistema financeiro, não deixa dúvidas quanto ao caráter profundo de suas raízes, que revela a quebra de legitimidade e de sustentação econômica, social, ambiental e política de reprodução do modelo vigente. A crise em curso deixa clara a perda de hegemonia do concerto do poder que se perpetua desde o fim da Segunda Guerra e das instituições internacionais que lhe dão sustentação econômica e política. A crise abre, portanto, brechas de disputa pela democratização do sistema internacional. As novas e instáveis coalizões entre países, não mais cristalizadas em divisões Norte-Sul, são sintomas de um cenário político global em movimento. A Rio + 20 pode ser um importante momento de alavancagem de uma nova correlação de forças e de uma nova agenda global, oferecendo aos movimentos sociais, organizações populares, movimentos de povos tradicionais e originários, sindicatos, entidades da sociedade civil que refletem ou buscam expressar os anseios de amplos setores da população mundial, a oportunidade de renovar seu protesto e seu questionamento sobre aos rumos dados ao futuro do mundo pelas corporações, instituições e países dominantes, acompanhados pela grande maioria das elites políticas e econômicas, desenhar suas utopias e formular com maior consistência as alternativas que vislumbram.

A Rio + 20 e a construção de alternativas


A Rio+20, como evento mundial, nos permite sair das nossas fronteiras; nos abrir à
solidariedade universal, para além dos particularismos; buscar pontos comuns de
observação, que nos desloquem e façam com que nos encontremos, de muitos lugares
do mundo. Mas isso com a condição de que nossa referência esteja nos povos e
populações marginalizados e excluídos, com as quais compartilhamos os anseios por
uma sociedade cujo pilar de sustentação sejam os direitos e a justiça social e ambiental.
Não temos todas as respostas, mas temos a responsabilidade de buscá-las, entre o
desejável e o possível. Mas mesmo o possível não se realizará sem que seja portador de
utopias que reatem os laços entre ser humano e natureza, no campo e na cidade. Ele
exige, portanto, uma mudança completa dos paradigmas que definem a civilização
ocidental. Querer outras formas de organização das sociedades do que os Estados-
Nações, outras formas de democracia do que a democracia parlamentar, outras
economias do que a economia capitalista, outra mundialização do que a do mercado,
outras culturas do que a imposta pelos EUA. Escutá-los com atenção talvez nos ajude a
encontrar os rumos do futuro e formular novas utopias que motivem a humanidade,
em particular a juventude.


Desenvolvem-se através do planeta centenas de milhares de alternativas que podem
ser as sementes da construção de novas utopias:
- Milhões de camponeses, de sem-terra, de povos indígenas e outros grupos
tradicionais resistem e lutam pela Reforma Agrária, pela agroecologia, pelo definitivo
domínio de suas terras ancestrais. Apoiados por tecnologias apropriadas, eles podem
garantir a soberania e segurança alimentar e nutricional do planeta e dar uma contribuição
decisiva na manutenção da biodiversidade, das águas e na mitigação e adaptação às
mudanças climáticas. Eles apontam uma alternativa ao modelo de agricultura e pecuária
dominante, que provoca a destruição dos ecossistemas e da biodiversidade, que
contribuem fortemente para o efeito-estufa e o envenenamento das águas, dos solos e
das pessoas.
- Experiências de economia solidária e de fortalecimento de mercados locais
contribuem para a redução do consumo de energia, encurtando os circuitos entre
produção, distribuição e consumo, favorecendo as micro, pequenas e médias empresas,
que fornecem empregos, em contraposição à circulação das mercadorias através do
mundo e deslocalização permanente das empresas e avanços tecnológicos, que não
reduzem o consumo de energia e de matérias primas e produzem desemprego.
- A lógica da economia não deve ser a do lucro, mas a de assegurar condições de vida
digna para as populações. Fortalece-se uma economia solidária que combate a
economia dominante excludente das pessoas. Nas cidades, nas roças e nas florestas do
sul do mundo, grande parte dos trabalhadores e das trabalhadoras se encontram na
economia informal, esquecidos pela macroeconomia, e inventam uma microeconomia
em parte sucedânea e concorrente da economia formal, em parte inovadora.
- Reconstituição de um tecido urbano descentralizado e interiorizado, novas políticas
habitacionais e urbanísticas, de saneamento e de transporte coletivo. Estas propostas
visam enfrentar o desequilíbrio dentro das cidades e metrópoles, que viraram
plataformas de exportação cercadas por enormes aglomerações de pobreza e miséria,
que somadas ao desequilíbrio na ocupação humana dos espaços nacionais e regionais,
fazem dessas cidades, e dentro delas, das camadas populares, as primeiras vítimas das
mudanças climáticas.

A construção de alternativas e a arquitetura institucional

A escala global dos poderes impede o avanço da emancipação humana nos termos da
idealidade inscrita nos pactos e convenções internacionais. Portanto, avançar nessas
alternativas e em outras supõe disputar e questionar os paradigmas das instituições e
atores internacionais que dão suporte ao atual modelo. Isso não quer dizer que
acreditamos numa mudança brusca e radical na economia mundial. Deve-se pensar
necessariamente em convivência, em transição no médio e longo prazos. Essa transição
se fará menos pela reforma interna das instâncias atuais de intervenção na economia,
que pretenderia reorientar suas estratégias, seus métodos e suas prioridades, e mais
pela construção de novos espaços, de instituições novas que não sejam viciadas pelo
seu passado, mas abertas para uma nova correlação de forças e novas agendas. As
instâncias atuais continuarão a ser questionadas a agir e até a se reformarem, mas há
que se esperar que elas percam progressivamente a sua importância, quando e porque
ao seu lado será criado algo radicalmente novo que crescerá econômica e
politicamente como contrapeso.

Para que tal ocorra é preciso olharmos para o processo rumo à Rio+20 como uma
oportunidade para investirmos no acúmulo de forças, na base da sociedade, que seja
capaz de disputar uma nova hegemonia. Após o ciclo de ascensão dos movimentos
contra-hegemônicos iniciado em Seattle e ampliado com o Fórum Social Mundial, e o
relativo descenso que as mobilizações de massa experimentaram nos últimos anos, a
Rio+20 se coloca como possibilidade de rearticulação e alavancagem de uma iniciativa
política no plano global.

É esta visão que orienta e delimita nossa vontade de participação no processo que nos
levará a Rio+20. Baseados nela, nos unimos ao apelo da convocatória do grupo
facilitador brasileiro criado por um conjunto de coletivos resumido nesta frase: "Cabe a
sociedade civil organizada chamar a atenção mundial sobre a gravidade do impasse
vivido pela humanidade, e sobre a impossibilidade do sistema econômico, político e
cultural dominante apontar e conduzir saídas para a crise. Mas é também da sua
responsabilidade afirmar e mostrar outros caminhos possíveis”.