A trajetória da cooperação internacional no Brasil
A chamada cooperação internacional no Brasil tem uma longa e importante história, e aqui me refiro especificamente às fundações e organizações não-governamentais internacionais, americanas e europeias: as fundações privadas, como as Fundações Ford, Kellogs, Rockfeller e MacArthur, ou organizações não-governamentais internacionais, confessionais ou não, como Oxfam, Novib, ICCO, EZE, Conselho Mundial das Igrejas e ActionAid, entre outras.
Assim como o Brasil, a cooperação internacional se modificou muito ao longo das últimas décadas. Ao entrarmos no século XXI é importante refletir sobre essa história e extrair do seu legado algumas dimensões com vistas a que continue a contribuir para a garantia e consolidação do dinamismo social e político da sociedade civil brasileira.
Nos anos 70, durante o período da ditadura militar, a cooperação internacional foi instrumental, ao ajudar a manter e fortalecer os núcleos democráticos de resistência no Brasil. Foi apoiando pessoas, organizações da sociedade civil e, principalmente, acadêmicos que lutavam pacificamente, dentro dos espaços possíveis, pela construção de processos e instituições democráticas, que a cooperação internacional conseguiu fazer sua contribuição.
Nesse período, instituições como CPDOC/FGV, Cebrap e Iuperj/UCM surgiram e logo contaram com o apoio da cooperação internacional. Foi nesse período também que as primeiras organizações da sociedade civil brasileira se estruturaram de forma mais ampla, como Fase e o antigo Cedi. A cooperação internacional possibilitou que várias instituições acadêmicas construíssem fortes laços com instituições americanas e europeias, fazendo com que a luta contra a ditadura no Brasil se tornasse uma agenda em outros países. Ajudar a manter a chama da democracia acesa talvez tenha sido a maior contribuição da cooperação internacional naquele período.
Demandas plurais
Com a abertura política e o processo da Constituinte dos anos 1980, a cooperação internacional pode fazer apostas mais ousadas no reforço e construção de organizações da sociedade civil, que não só lutavam abertamente por uma democracia participativa, mas também representavam demandas mais plurais. Foi durante esse período que organizações como Ibase, Gajop, Polis, Inesc e Centro Luis Freire surgiram, assim como as primeiras organizações diretamente ligadas aos chamados novos movimentos sociais específicos: Geledes, articulado ao movimento negro; Cfemea, ligada ao movimento das mulheres; MST, vinculado aos que lutavam pela reforma agrária; Coiab, representando os povos indígenas, entre outros. Nesse período, a cooperação internacional pôde também apoiar mais diretamente as organizações sindicais, como CUT e Contag, e os partidos políticos progressistas.
Talvez pudéssemos dizer que o papel da cooperação internacional nos anos 1980 tenha sido o de apoiar a construção plural da democracia participativa brasileira, ajudando a fortalecer a voz de grupos e movimentos ainda excluídos dos corredores do poder e apostando no papel fundamental para as políticas públicas das ONGs que trabalhavam fundamentalmente com advocacy.
Mas foi nos anos 1990 que o Brasil atingiu o seu auge no mundo restrito da cooperação internacional. Com a Eco 92 e uma Constituição sólida e inovadora recentemente aprovada, os holofotes da cooperação internacional se voltaram para o Brasil. A cooperação internacional queria aprender com o Brasil e, como consequência, houve grande ampliação das fontes internacionais de apoio e recursos para a sociedade civil brasileira.
Apesar de a discussão ambiental ter, inicialmente, dominado o interesse de muitos doadores, foi a possibilidade de construção de uma democracia sustentável e participativa que mobilizou a atenção da cooperação internacional, seja esta bilateral, multilateral ou privada. O Brasil naquele momento se tornava um “investimento social” certo e com retornos sociais e políticos garantidos.
Nesse período, a sociedade brasileira e, em consequência, a cooperação internacional, se voltaram para pôr em prática as vitórias logradas nos períodos anteriores. Os esforços da sociedade civil, movimentos sociais, políticos progressistas, assim como acadêmicos e até mesmos os governos estavam direcionados para regulamentar, por meio de novas leis e políticas públicas, as várias conquistas da Constituição de 1988. O fortalecimento dos conselhos municipais, a capacitação dos líderes dos movimentos sociais e da sociedade civil, o monitoramento dos orçamentos públicos, os esforços de advocacy no Parlamento, a experimentação com orçamentos participativos, assim como o trabalho em rede foram amplamente financiados pela cooperação internacional.
O Brasil tornou-se naquele período um grande laboratório político-social, e com as famosas Conferências das Nações Unidas (Cúpula Mundial sobre a Criança, Eco 92, Conferência Internacional sobre Direitos Humanos, Conferência Mundial sobre a Mulher etc.), a sociedade civil e os governos tinham a plataforma ideal para dar visibilidade internacional à força inovadora e altamente politizada da nossa democracia participativa e da nossa sociedade civil.
É nessa época que nascem, com algum apoio da cooperação internacional, novas organizações como Ação Educativa, Ceert, Cepia, Themis, ASPTA, Etapas, Abong, Rede Brasil e Fboms, entre tantas outras. Estas novas organizações combinavam expertise temática com análises e estratégias que contribuíam para a consolidação da democracia participativa.
Presença internacional
Entramos então no século XXI como uma democracia plena e celebrada pelo mundo todo por meio, por exemplo, do Fórum Social Mundial. O FSM simbolizava a vitalidade da sociedade civil brasileira e mesmo de nossos governantes, dando a esperança de que outro mundo era possível. Nossa democracia participativa se torna “objeto de desejo” das sociedades civis mundiais.
Os grandes avanços começavam a dificultar à cooperação internacional identificar os imensos desafios que a democracia brasileira ainda enfrentava: as fragilidades de muitas instâncias de participação; a perpetuação das elites nas instâncias de poder; a pouca representatividade da pluralidade e diversidade brasileira nas instituições representativas; a impunidade e a falta de implementação real dos direitos adquiridos pelos cidadãos brasileiros. Essas mazelas se tornavam invisíveis frente ao que se tinha logrado.
Mas é só quando, em 2003, o presidente Lula é eleito, que a cooperação internacional vocaliza com mais vigor que talvez sua missão tenha sido cumprida no Brasil. Na percepção de muitas fundações e organizações de cooperação, o Brasil tinha neste começo de século não só uma democracia robusta e participativa, mas finalmente um governo que trazia para dentro de sua máquina muitos dos parceiros antigos da cooperação internacional. Esses líderes sociais, acadêmicos progressistas, sindicalistas, mulheres, negros ou ativistas, tinham agora condições reais de utilizar a máquina do Estado para implementar e dar escala às demandas e concretizar finalmente as conquistas do passado.
Para a cooperação internacional, ficava evidente que em comparação com os desafios de outros países e continentes, principalmente a África, os desafios brasileiros eram um “luxo” e certamente menos prioritários no cenário internacional. Os poucos recursos da cooperação internacional fariam pouca diferença para o Brasil, mas poderiam ser muito úteis em outros países mais pobres. As análises da cooperação internacional foram reforçadas pelo crescimento econômico brasileiro, e isso levou muitos a achar que os recursos necessários para lidar com os problemas sociais do país poderiam e deveriam ser mobilizados nacionalmente.
É verdade que agora temos a Petrobras, Fundações como Bradesco e Itaú, Institutos como Boticário e Natura, entre muitos outros, investindo recursos significativos em questões sociais e ambientais. Essas e outras organizações do setor de investimento social privado nacional cumprem papel fundamental nas mudanças de nossa sociedade.
É com base nessa leitura da realidade brasileira que muitas das organizações da cooperação internacional tomam a decisão de diminuir, ou até mesmo encerrar, suas operações no Brasil. Rockfeller e MacArthur Foundations, por exemplo, fecham suas linhas de financiamento para o Brasil, e outras organizações como Novib, Dfid, GTZ e ICCO, redirecionam muito de seus recursos para a África.
A ousadia de lutar por direitos
Apesar da saída de muitas das organizações da cooperação internacional, algumas conseguem manter uma atuação relevante no Brasil, como é o caso da Fundação Ford ou da Oxfam. Outras, para continuar atuando no Brasil, arrecadam também recursos nacionalmente, como é o caso da Plan Internacional, ActionAid e Avina. Há ainda algumas poucas organizações internacionais com interesses setoriais específicos que abrem novas possibilidades de financiamento no Brasil, como é o caso da Moore, Packard, Open Society e Oak Foundation.
Para essas que continuam atuando no país ainda há agendas importantes, necessárias e promissoras no Brasil do século XXI. Essa nova agenda de apoio contempla, por exemplo, fomentar fundos e fundações nacionais independentes, como o Fundo Brasil de Direitos Humanos, Fundo Elas ou Fundo Dema; potencializar a atuação da sociedade civil brasileira junto a outros países do hemisfério sul; continuar apoiando institucionalmente organizações ainda frágeis, mas que representam grupos fundamentais de nossa sociedade, como os quilombolas, mulheres negras e indígenas; ou apoiar o debate ao redor de novos temas, como a democratização da comunicação, mudança climática e transparência da justiça.
Diante dessa história, pode ser interessante especular como teria sido a democracia brasileira sem o apoio aos resistentes dos anos 1970, às protagonistas feministas dos anos 1980, aos ecologistas dos anos 1990, aos movimentos de autoafirmação dos negros e indígenas, aos defensores dos direitos humanos ou aos que lutam pela reforma agrária. Não há dúvida que mesmo sem a cooperação internacional os movimentos sociais e de resistência democrática teriam feito vingar seus desejos e anseios, mas talvez nossa democracia tivesse outras características e desafios se nesta trajetória a cooperação internacional não estivesse lado a lado com alguns desses importantes movimentos da sociedade civil. Logicamente, também foram cometidos erros e investimentos sociais desastrosos como, por exemplo, os programas de controle populacional e o apoio à revolução verde. E esses erros contribuíram de alguma forma para o nosso aprendizado e para o que somos hoje como sociedade.
O que extrair dessa história? Talvez uma das mais importantes contribuições da cooperação internacional no Brasil tenha sido o apoio a indivíduos, acadêmicos, organizações e movimentos sociais, para que esses pudessem exercer, de forma independente, a sua ousadia de lutar por direitos, de trazer para o centro do debate temas controversos e difíceis, de dar visibilidade aos excluídos e “invisíveis”, de desafiar normas estabelecidas e, até mesmo, de errar e aprender com seus erros.
Logicamente, esse legado não é um privilégio ou um monopólio da cooperação internacional. É simplesmente uma escolha estratégica que tanto a cooperação internacional quanto o investimento social privado nacional têm a responsabilidade de manter no Brasil do século XXI.
Ana Toni é economista e representante da Fundação Ford no Brasil.