Situação dos Guarani Kaiowá em Dourados

Uma equipe da Missão visitou, durante os dias 5 a 8 de abril de 2008, o Estado de Mato Grosso do Sul, para verificar os impactos da expansão da produção de cana-de-açúcar para a produção de etanol sobre o direito à alimentação, à terra e os direitos trabalhistas das comunidades indígenas Guarani Kaiowá, no município de Dourados.
| von FIAN

Introdução
No Mato Grosso do Sul, o cultivo da cana começa a ter espaço a partir do final da década de 1970, com incentivos de programas de governo como o Proálcool. Já no início dos anos 80 foram instaladas as primeiras usinas destinadas à produção de açúcar e álcool. Conforme dados da Secretaria de Estado da Produção e do Turismo (SEPROTUR), publicados no jornal Campo Grande News, no dia 14 de maio de 2007, na primeira safra de cana no MS, em 1984/1985, o total colhido teria sido cerca de 2 milhões de toneladas. Hoje, segundo os mesmos dados, em 2006 e 2007, já com 11 usinas instaladas, foram colhidos 11, 6 milhões toneladas de cana em uma área de 170 mil hectares. Esta colheita possibilitou a produção de 575.536 toneladas de açúcar e 640.843 m³ de álcool, gerando 25.500 empregos diretos e 102 mil indiretos. Porém, a perspectiva da expansão da cultura da cana no MS é impressionante, conforme os dados publicados, um total de 68 usinas estariam buscando aquele Estado, sendo que 29 já estão em processo de instalação e 28 ainda estão em negociação. Segundo a Secretária de Estado, Tereza Cristina, cada usina gera empregos para 600 pessoas.
Segundo as previsões da Secretaria, as usinas gerariam cerca de 180 mil empregos diretos e 800 mil indiretos. Atualmente 60% da produção está destinada ao álcool e 40% em açúcar. Hoje, a produção do MS representa 3% da produção nacional. Esta expansão da cana demandará a disposição de 200 mil hectares. Vale ressaltar que o Governo do Estado incentiva fortemente, com isenção total do ICMS ao longo de 15 anos, as usinas que se instalarão no Estado usando argumentos de que estas irão gerar empregos.
No que se refere a situação indígena, a partir da década de 80, a mão de obra indígena passa a ser utilizada no cultivo da cana e, desta forma, a questão da indústria alcooleira passou a ser manchete nos jornais devido a denúncias de trabalho escravo e de exploração de trabalho indígenas. Um Relatório da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) de 1983, já relata a presença de várias crianças em idade escolar e mulheres trabalhando no corte da cana. Desde então, nos meses de fevereiro a novembro ficam apenas as mulheres e as crianças na aldeias pois os homens estão trabalhando com o cultivo da cana. Apenas no ano de 2.000 passou-se a exigir que fosse assinada a carteira de trabalho dos trabalhadores indígenas. Em 2003 criou-se a Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições do Trabalho Escravo no MS. Esta Comissão, composta por 30 representantes governamentais e não governamentais, tem acompanhado regularmente o trabalho nas usinas.
Porém, as denúncias de trabalhos análogos a escravidão ou degradantes continuam. Muitos indígenas ante a falta de alimento e outras fontes de renda alternativas se vêem obrigados a trabalhar no corte de cana64. O Jornal Campo Grande News, do dia 14 de maio de 2007, noticiou que 409 trabalhadores foram resgatados de uma destilaria após terem sido encontrados em situação degradante. Destes 150 eram indígenas Os Guarani Kaiowás do Estado do Mato Grosso do Sul, que totalizam uma população de 27.500 indígenas, estão sendo vítimas de violação do Direito Humano à Alimentação Adequada. Nos últimos três anos mais de 35 crianças indígenas morreram por desnutrição, vários indígenas foram assassinados e outros cometeram suicídio, e muitos tornaram-se vítimas do alcoolismo.
Na raiz desta situação está a falta de terra e acesso a alimentos, que é conseqüência do roubo e da destruição dos territórios tradicionais dos povos indígenas. Ao longo da história houve um processo de violência contra a forma de vida das populações indígenas Guarani Kaiowá, o que faz com os indígenas não possam mais viver conforme sua cultura. Esta situação será agravada com a implantação de todas as usinas de cana-de-açúcar previstas para aquele Estado nos próximos três anos. Certamente o processo de identificação das terras indígenas será atrasado pelo interesse dos proprietários 64 Há 10.000 trabalhadores indígenas nas usinas de Mato Grosso do Sul e 1.500 na aldeia de Dourados, a qual foi visitada pela delegação.
de terras, já que uma área de 200 mil hectares está sendo prevista para a produção de cana. Além dessas mortes causadas pela fome, estima-se que no Mato Grosso do Sul a desnutrição afeta pelo menos 600 crianças decorrentes da insuficiência na alimentação e a falta de território o qual possibilita a preservação da cultura alimentar Guarani-kaiowa. Estes fatores ocorrem pela omissão do Governo Brasileiro que não garante que a FUNAI realize o trabalho de identificação e demarcação das terras indígenas e na ineficiência deste de elaborar políticas públicas voltadas para esta população.

Situação da posse das terras do povo Guarani Kaiowá. Contexto histórico e atual
A erva mate se converteu no produto mais importante de exportação econômica depois da guerra do Paraguai. Grande parte do território correspondente ao povo guarani foi arrendado a uma empresa de erva mate (Mate Larangeira) de capital argentino, que tem o monopólio da exploração entre 1892-1940. A empresa não tem a propriedade mas o direito de exploração.
A população Kaiowá é utilizada para a exploração da erva mate. Neste momento se demarcam pequenas áreas de terra para o usufruto de população indígena entre 1915-1928 (18.125 ha). Entre 1928 e 1980, existe uma clara preocupação do governo para conseguir com que estes indígenas, então dispersos, entrem nestas pequenas áreas demarcadas para, deste modo, facilitar o processo de colonização. Durante este período, muitas porções deste território habitado pelo povo Guarani são compradas por fazendeiros, porque o governo nacional lhes concede essas pequenas terras, as titula. Estes fazendeiros desmatam e formam fazendas, incorporando a população guarani, que é muito valiosa como mão-deobra.
Esta incorporação do indígena à fazenda se mantém até a década de 70. Porém, em 1970, chega a soja e a mecanização e a necessidade de mão-de-obra começa a reduzir-se. Neste período, há uma grande pressão para que as aldeias tradicionais sejam despovoadas e, deste modo, aumenta em grande medida a população das terras das reservas, comprometendo o meio ambiente e iniciando uma etapa de problemas gerados pela aglomeração populacional.
Nas décadas de 1970 e 1980 começa a atuar na região o CIMI (Conselho Indigenista Missionário). Esta organização tem o objetivo de acompanhar e organizar os grupos que habitam nas áreas das fazendas para que eles comecem a reclamar suas terras. Em 1973 o governo declara o Estatuto do Índio (confira acima 3.4.2)..Tratase de uma Lei Federal que ordena o governo a demarcar as terras pertencentes aos povos originários, nos 5 anos seguintes. Esta lei permite a recuperação de 22 mil ha de terra, que estavam titulados em nome de terceiros (fazendeiros) (1980-90). As organizações sociais contribuíram, em grande medida, para este processo.
Apesar de não existir mais um conflito em relação a estes 22 mil ha, o problema da aglomeração populacional e a escassez de terra não foi resolvido. Ainda atualmente, a maioria da população se encontra localizada nos 18 mil ha demarcados antes de 1928. Neste momento, restam aproximadamente 165 mil ha identificados para esta demarcação. Nas regiões do Estado mais próximas da fronteira com o Paraguai, grupos indígenas ocupam terras, convertendo-se estas regiões em áreas de conflito aberto.
Segundo o relato das organizações sociais e de acadêmicos, existe um processo de valorização da terra com a instalação de novas usinas para a produção de álcool. Estas informações são confirmadas pelo Instituto FNP, consultoria especializada em agronegócio. Em 2007, o Instituto apontava que, no período de 12 meses, o preço da terra para plantio de cana de açúcar subiu 67,4% em Chapadão do Sul e 61,5% em Três Lagoas, ambos municípios de Mato Grosso do Sul (Valor Econômico, 2007). Nos informaram também que grande parte dos proprietários das terras que cercam as aldeias pertencem à classe política de Mato Grosso do Sul, o que demonstra uma importante concentração do poder político e econômico. A produção de cana também está baseada em grande medida no arrendamento da terra dos proprietários locais às usinas recém-chegadas.
Além disto, fomos informados sobre um processo de extrangeirização da propriedade da terra, que está acontecendo não apenas no Estado do Mato Grosso do Sul, mas em todo o país, relacionada à expansão do setor sucroalcooleito. A compra massiva de terras por estrangeiros faz com que o Estado do Mato Grosso do Sul tenha hoje um dos hectare de terra mais valorizados do país. O presidente do Incra reconhece que, além do país não ter controle sobre a compra desenfreada de terras por estrangeiros, esta situação ainda cria dificuldades para o governo comprar terras para realizar a reforma agrária.
Ele inclusive cita um exemplo no Mato Grosso do Sul: na cidade de Naviraí, dois produtores desistiram de vender suas terras para o Incra pois receberam melhores ofertas de compradores estrangeiros. O tema da demarcação destas terras, em teoria está entre as prioridades do Estado, no entanto, até o momento não se obteve resultados. A prioridade das organizações sociais tem sido pressionar o Estado para que garanta, agilize e concretize o processo de demarcação das terras que correspondem ao povo Guarani Kaiowá. Neste sentido, podemos dizer que a economia regional se voltou predominantemente para a produção de cana-de-açúcar destinadas aos combustíveis e que isto é um fator de pressão que tem dificultado o processo de demarcação. O organismo a cargo deste processo é a FUNAI65.
65 A Fundação Nacional do Índio é o órgão do governo brasileiro que estabelece e executa a Política Indigenista no Brasil, dando cumprimento ao que determina a Constituição de 1988. Na prática, significa que compete à FUNAI promover a identificação e demarcação de terras indígenas, a educação básica aos índios, demarcar, assegurar e proteger as terras por eles tradicionalmente ocupadas, estimular o desenvolvimento de estudos e levantamentos sobre os grupos indígenas. A Fundação tem, ainda, a responsabilidade de defender as Comunidades Indígenas, de despertar o interesse da sociedade nacional pelos índios e suas causas, gerir o seu patrimônio e fiscalizar as suas terras, impedindo as ações predatórias de garimpeiros, posseiros, madeireiros e quaisquer outras que ocorram dentro de seus Segundo a coordenadora deste organismo, ainda restam 35 áreas em discussão. Para fins de março de 2008 estava previsto o início dos estudos para a homologação das terras, mas este processo está atrasado e iniciaria somente em meados de abril. A FUNAI acompanha a situação em 38 aldeias e 18 acampamentos. Trabalha também com a demarcação de 6 rios que os indígenas reconhecem como parte de seu território.

Terra e agrocombustíveis

A produção de cana-de-açúcar aparece claramente pressionando o processo legal e político de demarcação das terras indígenas no Mato Grosso do Sul e, portanto, limita o acesso à terra e aos recursos naturais da população Guarani Kaiowá.
A primeira colheita de cana-de-açúcar realizou-se na temporada de 1984/85, com duas mil toneladas. No entanto, há cerca de dois anos está ocorrendo um novo boom da cana, que vem avançando sobre a terra fértil do povo Guarani Kaiowá, introduzindo também a tensão entre um cultivo energético e a produção de alimentos desta população condenada a viver num espaço de terra insuficiente para alimentar a todos os seus habitantes.


Além dos assassinatos de indígenas, a violência sofrida por conta de ações de retomada de territórios tradicionais têm se intensificado. Em 18 de setembro de 2009, um acampamento guarani-kaiowá em Dourados (MS) foi atacado por homens armado da empresa de segurança Gaspem. Os pertences e o barraco dos acampados foram incendiados e o indígena Eugênio Gonçalves, de 62 anos, foi ferido à bala.

Cerca de 20 pessoas do povo Guarani-Kaiowá das aldeias de Sassoró e Porto Lindo foram feridas no dia 8 de dezembro, em um confronto com seguranças particulares de fazendeiros da região do município de Iguatemi.

http://www.fian.org/cases/cases2