Lei da Ficha Limpa: um vento de mudança na política brasileira

<p><strong>Lei da Ficha Limpa: um vento de mudança na política brasileira</strong></p><p>*<em>Moacir Assunção</em><br /><br />Passado quase um ano e meio de sua sanção pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei Complementar 135/2010, mais conhecida como Lei da Ficha Limpa, está entrando em um novo estágio que deve levar à sua aprovação final, apesar da oposição de grande parte dos políticos brasileiros, em especial daqueles que têm todos os motivos para se opor à nova legislação, pelo seu caráter moralizador e profundamente transformador dos costumes da política nacional. Estes, por sinal, são os mesmos que sempre se mostraram contrários, por razões óbvias, a qualquer tentativa de mudança no panorama político brasileiro. Em geral, confundem o nobre instituto da imunidade parlamentar, criado na Inglaterra vitoriana para proteger as opiniões de parlamentares das autoridades, com a impunidade dos parlamentares.<br /></p>
| von Moacir Assunção


Na semana passada, a ação decisiva do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa – o primeiro negro a compor a mais importante corte jurídica brasileira – evitou que a lei sofresse um revés. Estava em discussão a questão da constitucionalidade da nova legislação e o também ministro Luiz Fux, relator de várias ações que questionam a constitucionalidade da lei, defendia a tese de que parlamentares acusados de corrupção só poderiam ser considerados inelegíveis na eleição seguinte se renunciassem depois de o processo na Casa Legislativa ser aberto. Na prática, isso limpava a ficha dos políticos que renunciaram no passado para evitar cassação. Beneficiaria gente como o ex-senador Joaquim Roriz (PSC-DF), os ex-deputados Jader Barbalho (PMDB-PA) e Paulo Rocha (PT-PA) e o deputado Waldemar da Costa Neto (PR-SP).

Barbosa, então, pediu vistas do processo, o que deve adiar novas votações até a posse da futura ministra Rosa Maria Weber, prevista para o ano que vem. Ameaçados de cassação em processos legislativos por corrupção poderiam simplesmente, caso predominasse a tese de Fux, renunciar antes da abertura de processo disciplinar no Congresso, nas câmaras estaduais ou municipais, que estariam livres dos rigores da Lei. Na prática, isso faria com que a Ficha Limpa perdesse boa parte de sua eficácia. Ou seja,deixaria tudo como está.

Pelo seu histórico, Rosa Maria, ex-ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST), considerada sensível a grupos da sociedade civil e minorias, deve ser favorável à legislação. Ela foi indicada pela presidente Dilma Rousseff para o cargo, na vaga de Ellen Gracie, ministra que defendeu a constitucionalidade da Ficha Limpa  e se aposentou, mas ainda deve ser sabatinada pelo Senado, o que  só permitirá que a nova ministra comece a atuar em meados de março de 2012, quando o STF voltará  do recesso do fim do ano. Caso o ministro Joaquim Barbosa não tivesse pedido vistas, vários aspectos da Lei da Ficha Limpa poderiam ter sido abrandados, diminuindo sua  eficácia no combate à corrupção e à malversação dos recursos públicos, praga de que o Brasil está muito longe de conseguir se livrar e custa uma fortuna a toda a sociedade ano após ano. Um dado, possivelmente subestimado, da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP) aponta que o desvio de recursos públicos custa cerca de US$ 70 bilhões ao ano. Investidos, esses recursos permitiriam pagar uma parte da dívida social que o Estado brasileiro tem com sua população.

Muito criticado por líderes como o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, e por representantes do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (rede de 48 organizações não-governamentais que criou a Lei da Ficha Limpa), Fux admitiu rever seu posicionamento nos temas polêmicos. “Você sempre reflete sobre a repercussão da decisão. Até o término do julgamento, a lei permite que o próprio relator possa pedir vista ou retificar o seu voto. É uma decisão jurídica e fática”, disse ele. Indicado pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), Fux foi responsável, no início de  2011, pelo desempate na decisão do STF que julgou que a nova legislação não deveria valer para as eleições de 2010. Até sua entrada na corte, o STF havia empatado duas vezes por 5 a 5 na discussão sobre a entrada em vigor da lei. Ele votou contra a pretensão da sociedade civil de que a lei entrasse em vigor nas eleições de 2010.

Com isso, vários senadores e deputados, entre os quais o ex-governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima (PSDB), cassado por acusação de compra de votos, conseguiram voltar ao Senado e ao Congresso. A decisão frustrou a vontade da população que, compreensivelmente, esperava ver fora da política políticos que contrariassem os princípios da ética e da honestidade no trato da coisa pública. No entanto, a luta em prol da moralização da política brasileira não parou. Ao que parece, o espírito da Lei da Ficha Limpa calou fundo na vontade da maioria da população que, compreensivelmente, se cansou de ver estourar escândalos de corrupção em todas as esferas das autoridades públicas deste país, hoje tido como detentor da oitava maior economia do planeta e integrante dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China), as chamadas nações emergentes, cujo crescimento e superação de heranças de subdesenvolvimento têm surpreendido o resto do mundo.

No dia 7 de setembro, data da Independência do Brasil, a mais  importante festa cívica do país, manifestantes tomaram as principais avenidas  de Brasília para protestar contra a corrupção, em um ato marcado pela internet. O mesmo ocorreu, meses depois, em São Paulo, no Rio de Janeiro, Recife e Porto Alegre, embora com público menor. Em todas as passeatas, era possível ver pessoas comuns, cheias de esperanças de dias melhores para o país, com faixas nas mãos pedindo a imediata decretação da legalidade e constitucionalidade da lei pelo STF. A principal argumentação dos opositores da nova legislação – a presunção da inocência, ou seja, o princípio de que ninguém seja considerado culpado até o trânsito em julgado ( sem recursos) da decisão foi ironizado por seus defensores, entre os quais alguns dos mais famosos juristas brasileiros como Dalmo Dallari e Celso Bandeira de Mello, que lembraram que o princípio se aplica ao direto penal mas não ao eleitoral, já que impedimento de participar de uma eleição não é pena, mas condição prévia.

Quando foram marcados os primeiros julgamentos da lei, no início deste mês de novembro, o site www.aavaz.org, que promove mobilizações pela rede mundial de computadores, pediu a participação dos brasileiros para pressionar os juízes do STF em prol da nova legislação. O resultado foi que, em poucos dias, quase 96 mil pessoas entraram no site da ONG e assinaram um documento, enviado aos juízes do STF, no qual pediam a declaração da constitucionalidade da nova lei. Com isso, a corte acabou adiando sua decisão.

Com certeza, a Lei da Ficha Limpa ainda enfrentará alguns percalços até ser declarada plenamente constitucional – o que deve ocorrer apesar dos seus poderosos opositores. No entanto, quem viu a luta para sua aprovação, contra todos os prognósticos, sabe quem os brasileiros não se intimidarão com as dificuldades. Quando foi apresentado o projeto à Câmara, um deputado afirmou a Chico Whitaker, um dos principais líderes do MCCE, que era mais fácil um boi voar do que a proposta ser aprovada. No caso, o boi voou e a proposta foi aprovada com louvor. A expectativa popular é que isso continue ocorrendo. Imaginamos que os ministros do STF não se atreverão a jogar no lixo uma lei apresentada por 1,3 milhão de brasileiros e aprovada por outros 2 milhões na rede mundial.

Seria, se ocorresse, um enorme retrocesso para a causa da moralização da política no Brasil e produziria efeitos nefastos à vontade popular por mudanças nessa área tão sensível.A Lei da Ficha Limpa, afinal, foi fruto de uma legislação que prevê a iniciativa popular, ou seja, que o povo pode participar efetivamente do processo legislativo ao apresentar leis, com  assinatura de 1% dos eleitores (cerca de 1,3 milhão de pessoas), que o Congresso tem obrigação constitucional de acatar e fazer tramitar em regime de urgência.


*Moacir Assunção é jornalista, professor universitário da Universidade São Judas Tadeu (USJT) e autor, junto com o advogado Marcondes Pereira Assunção, do livro Ficha Limpa – a lei da cidadania – manual para brasileiros conscientes, lançado em dezembro de 2010 pela Editora Realejo.  Como repórter político, foi um dos jornalistas brasileiros que mais escreveu sobre a Lei da Ficha Limpa.