O que seria das lutas de hoje sem o legado de quem se opôs à ditadura?
As alegrias e os dissabores de fazer Marighella, meu primeiro filme como diretor, que estreia hoje
Wagner Moura
Em depoimento a Tiago Coelho
No final de 2012, eu estava em Salvador, onde sempre passo o verão. À época, já tinha a ideia de dirigir meu primeiro filme, mas pensava em algo pequeno, intimista, com poucos personagens e locações. Algo sobre o qual eu pudesse ter mais controle. Naquele verão, Maria Marighella, amiga de muitos anos e neta do guerrilheiro Carlos Marighella, foi até minha casa com a biografia de seu avô escrita pelo jornalista Mário Magalhães e disse: “A gente precisa transformar esse livro num filme.” Sou fascinado pelas revoltas populares do Brasil, que costumam ser muito mal contadas nas escolas. Fundador da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização de esquerda que aderiu à luta armada para combater a ditadura nas décadas de 1960 e 70, Marighella teve sua trajetória apagada da história oficial do país. Quando Maria veio com a proposta, tratei logo de ler a biografia. Lançada em outubro de 2012, Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo me impressionou demais, embora eu já fosse “marighellista”. Quando terminei a leitura, decidi: “Vamos fazer. Quero devolver a figura de Marighella ao imaginário popular.”
Eu estava interessado no longa, mas ainda não cogitava dirigi-lo. Marighella é um drama histórico, repleto de implicações políticas, que demandaria cenas de ação e um elenco enorme, além de muita responsabilidade em relação à época retratada e às pessoas envolvidas naquilo tudo. Era, em resumo, um filme grande, o oposto do que eu imaginava como uma primeira direção. Começamos a pensar, então, num diretor. Tinha de ser alguém que se identificasse com o guerrilheiro. Seria bom que fosse um baiano, porque Marighella nasceu em Salvador. Comecei a achar que essa pessoa era eu mesmo.
Em 2013, já sentia o recrudescimento do conservadorismo no Brasil. Naquele ano, fiz Praia do Futuro, longa-metragem dirigido por Karim Aïnouz. Lembro que o filme gerou muita polêmica, já que havia cenas de sexo entre dois homens. Teve gente que devolveu os ingressos. Foi uma confusão. Dei algumas entrevistas na ocasião, em que dizia: “Está se formando uma onda conservadora muito violenta no país.” É claro que, àquela altura, eu já imaginava que um filme sobre Marighella enfrentaria alguma resistência ou oposição por parte da direita historicamente conectada com o passado autoritário, elitista, patriarcal, escravocrata e violento do Brasil. O que eu não podia prever é que as coisas fossem chegar aonde chegaram.
Iniciei a escrita do roteiro com Felipe Braga em 2013 mesmo. Nossa preocupação maior era com a dramaturgia: como tornar os personagens críveis, complexos. Buscávamos driblar os maniqueísmos e as simplificações. Marighella é colocado em xeque o tempo inteiro, por praticamente todos os personagens.
Em 2015, fui gravar a série Narcos, na Colômbia. Quando retornei, em 2016, houve o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Meu filme sobre um guerrilheiro negro e comunista seria, sem sombra de dúvida, objeto de ataques. Muito antes de Jair Bolsonaro ter possibilidades reais de alcançar a Presidência da República, a extrema direita já criminalizava artistas, tachando-os de ladrões e aproveitadores do dinheiro público – uma falácia escrota, mas, infelizmente, de comunicação eficaz. O MBL fez um cartaz com a minha cara afirmando que eu havia recebido não sei quantos milhões do PT via Lei Rouanet. Uma canalhice. Naquele contexto caótico, de antiesquerdismo, o lavajatismo se apresentava como a tábua salvadora do país. Ainda em 2016, escrevi um artigo para a Folha de S.Paulo, alertando contra o golpe em curso. Nesse artigo, eu dizia: “Sergio Moro é um juiz que se comporta como promotor.”
Quando tentei financiar a produção do filme, entendi que o antiesquerdismo pós-golpe e as campanhas de difamação contra artistas haviam surtido efeito. Nenhuma empresa queria se associar ao projeto. Nós conseguimos bancar o longa graças ao Fundo Setorial do Audiovisual, mantido por uma contribuição chamada Condecine, gerada pela própria atividade cinematográfica. O projeto também acabou sendo patrocinado pela Globo Filmes e, mais tarde, pela Spcine, empresa da prefeitura paulistana que estimula o desenvolvimento da indústria audiovisual.
As dificuldades que enfrentamos uniram bastante o elenco e a equipe técnica. “A gente vai contar essa história!”, dizíamos. O longa foi virando uma peça de resistência. No final de 2017, começamos as filmagens. Bolsonaro já despontava como candidato ao Planalto.
Eu quis filmar Marighella do jeito que curto ser filmado quando atuo: com liberdade. Não gosto de muita marcação de cena nem de mudar a posição das câmeras o tempo todo. Queria que os atores fluíssem pelas cenas sem muita interrupção. E queria que o público acompanhasse os personagens de perto, com intimidade. Cinema, para mim, é personagem. Eu sou um ator, o que me interessa são os personagens e suas complexidades.
A tortura foi a face mais monstruosa da ditadura. Eu não queria banalizá-la. Resolvi que filmaria apenas uma cena de tortura. Mas a cena precisaria ser incômoda, intragável, difícil de ver. Jorge Paz, um ator muito valente, a protagonizou. Tivemos que fazê-la em dois dias, pois, no primeiro, Paz escorregou e bateu a cabeça no chão. Durante a tortura com eletrochoque, o personagem grita: “Vocês estão matando um brasileiro.” Paz ficou com um galo, mas não queria parar de filmar. Preferimos, no entanto, interromper a filmagem e mandá-lo para um hospital. Por sorte, não houve nenhuma lesão grave. A cena se baseia na tortura de uma figura histórica da ALN, Virgílio Gomes da Silva, que disse mesmo aquelas palavras, segundo relatos de outros presos. É algo que me emociona muito. “Vocês estão matando um brasileiro.”
Enquanto filmávamos, um grupo de extremistas nos ameaçou pelo Facebook. Prometeram invadir o set num determinado dia, quando pretendíamos rodar uma cena externa. No dia em questão, fiz uma reunião com o elenco e avisei: “A gente recebeu uma ameaça. Não quero que ninguém responda a provocações, mas também não quero que ninguém abaixe a cabeça para nenhum fascista que venha aqui fazer merda.” O bonito dessa história é que uns quinze garotos e garotas da Juventude Antifascista apareceram no set. Os fascistas, covardes, não foram. Por precaução, batizamos o longa com um nome alternativo e passamos a usá-lo sempre que pedíamos autorização para filmar em lugares públicos. Assim, não apenas nos protegeríamos daquele tipo de ataque como evitaríamos a negação dos pedidos, o que já havia acontecido. Bastava ler o título original do projeto para certas autoridades vetarem as filmagens.
A escolha de Seu Jorge como protagonista também foi alvo de ataques, agora racistas. Minha intenção inicial era convidar para o papel o rapper Mano Brown, por quem nutro enorme admiração e que, para mim, sintetiza muito da luta de Marighella. Brown tem um tom de pele que se assemelha ao do guerrilheiro, e os dois são filhos de mulheres pretas com homens brancos. Quando o rapper saiu do projeto, acabei optando por Seu Jorge, um negro retinto. Assim que começaram a pipocar as críticas racistas ao fato de o Marighella do filme ser mais preto que o real, percebi que minha escolha reiterava a negritude do guerrilheiro de um modo muito potente, em oposição ao embranquecimento que a história e o audiovisual brasileiros impõem a determinados personagens.
Marighella era filho de um imigrante italiano com uma preta nascida em maio de 1888, o mês da abolição da escravidão. A mãe dele descendia de africanos escravizados e oriundos do Sudão – pretos muçulmanos que resistiram ao cativeiro com muita luta na Bahia. Não faz sentido desconectar Marighella de sua ancestralidade. Ele nasceu na Baixa do Sapateiro, um bairro pobre de Salvador, habitado principalmente por pretos. As vizinhas de sua mãe diziam que ela tinha uma barriga suja, pois, apesar de casada com branco, gerou filhos escuros. O guerrilheiro sofreu injúrias raciais a vida inteira. Certa vez, por exemplo, um parlamentar envolvido em improbidades teve seu discurso interrompido por Marighella, então deputado federal. “Não admito que Vossa Excelência, um sujeito de cor, interrompa o meu depoimento”, protestou o corrupto. Marighella era um homem negro e meu filme reafirma isso.
Em 2018, começamos a montar o longa. Sempre quis que fosse um filme sobre amor – todos os personagens de Marighella são movidos por amor. Eles se sacrificam uns pelos outros o tempo inteiro, ou sacrificam uma parte de suas próprias vidas pelo que acreditam.
Tão logo terminamos a montagem, o filme foi convidado para a Seleção Oficial do Festival de Berlim. A gente estreou na capital alemã em fevereiro de 2019, no início do governo Bolsonaro. Foi uma sessão consagradora. Dez minutos de aplausos. A partir daí, Marighella teve uma trajetória internacional muito vitoriosa. Ao longo de 2019, participamos de festivais no mundo todo, sempre com uma resposta emocionada do público e críticas positivas. Seu Jorge ganhou prêmios de melhor ator em Bari, na Itália, e em Goa, na Índia. O New York Times escolheu Marighella como um dos filmes da temporada. Mas, de verdade, nada disso faria sentido para mim enquanto não estreássemos no Brasil.
Conseguimos marcar o lançamento nacional para novembro de 2019. No entanto, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) negou à O2 Filmes pedidos para o recebimento de uma complementação do Fundo Setorial, com a qual já havíamos sido contemplados. A justificativa era que a O2 ainda não havia concluído outro projeto, também financiado pelo governo federal e que já deveria estar pronto. Tratava-se de uma burocracia comum, relativamente fácil de resolver, mas não sob a presidência de Bolsonaro. Mesmo sem o dinheiro, decidimos que iríamos estrear de qualquer jeito. Afinal, Marighella foi feito para o público brasileiro. Mas aí tivemos que lidar com a pandemia, que nos forçou a adiar o lançamento mais duas vezes.
Nossa estreia será hoje. Antes, no dia 25 de outubro, promovemos uma pré-estreia no Teatro Castro Alves, em Salvador, cercados de amigos queridos, gente que queria ver aquela história contada, a minha família, a família de Marighella e muitos movimentos sociais. Depois, passamos por Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo. Tem sido uma experiência bem forte. O filme será exibido em acampamentos do MST e do MTST. Em todas as sessões, contamos com a presença da Coalizão Negra por Direitos e diversos outros movimentos. Isso tem me dado muita alegria: a conexão que as pessoas fazem de suas lutas de hoje com a luta dos que resistiram à ditadura.
Continuamos sendo atacados. Recentemente a militância digital bolsonarista entrou na plataforma IMDb para dar nota baixa ao filme, usando robôs, a fim de rebaixar a avaliação do longa. Uma cópia pirata vazou na semana do lançamento, e o acampamento do MST onde faremos uma exibição foi atacado por homens armados e encapuzados. Esses ataques fazem parte de uma fase triste do Brasil que, mais dia, menos dia, vai passar. Mas precisamos enfrentá-la com coragem. Estou preparado e tranquilo. Não vou fugir dos embates que o longa instiga. Isso seria um desserviço para o Brasil e a memória de Marighella.
O longa aponta para um futuro esperançoso. Gosto do fato de a única sobrevivente daquele grupo ser Bella, uma mulher. Gosto de ela olhar para a câmera como quem diz: “Esta é a minha luta, e a sua, qual é?” Na sequência, Carlinhos, outro personagem jovem, entra no mar. Aquele menino que, no início do filme, não sabia nadar termina a história entrando no mar. É uma imagem de esperança na juventude, nas novas gerações. Sempre me incomodou a ideia de que as revoltas populares foram “derrotadas”. O que é ser derrotado? Os quilombolas de Palmares foram derrotados, os Malês foram derrotados, os Alfaiates foram derrotados, e Canudos foi destruída. Mas o que seria das atuais lutas por liberdade sem esses legados? Quando, no fim do longa, o personagem Branco está sendo torturado, um policial lhe diz: “Nós matamos o seu amigo. Vocês perderam.” Ele responde: “Não, vocês perderam.” É isso.