Protagonismo e autonomia energética em favelas no Rio de Janeiro: Projeto Ilumina Complexo Paula Ramos como estudo de caso

| by Mariana Cascardo Michael

Desde a conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED), também conhecida como “Cúpula da Terra”, em 1992, a cidade do Rio de Janeiro desempenha um papel único internacionalmente quando o assunto é desenvolvimento de urbanismo sustentável. As conferências que viriam a seguir, Rio+10 e Rio+20, serviriam para aprimorar ainda mais a discussão sobre o assunto e firmar o compromisso da cidade com o que viria a ser conhecido como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS) criado pela ONU. O “Plano de Desenvolvimento Sustentável e de Ação Climática” (PDS) foi o último compromisso firmado pela cidade sobre o assunto, foi lançado em junho de 2021, e aborda a estruturação de diferentes setores que servirão como um guia para alcançar um desenvolvimento sustentável de médio e longo prazo (Gov. do Rio de Janeiro, 2021). No entanto, a cidade tem como pano de fundo enormes desafios de urbanização que precisam ser enfrentados, principalmente em relação aos aglomerados subnormais, ou como são mundialmente conhecidas, as favelas.

Segundo o DATA.RIO (2019), as favelas representam 22% dos habitantes do Rio de Janeiro e esses assentamentos informais, em sua maioria, possuem uma infraestrutura precária de energia elétrica. Devido ao avanço da tecnologia e da evolução dos aparelhos eletrônicos o consumo de energia elétrica está aumentando, e a expectativa é que a demanda continue crescendo ainda mais. Para completar a situação, as contas de luz estão vindo cada vez mais caras, estando nos últimos sete anos muito acima da inflação, com a energia elétrica residencial mostrando um aumento médio anual de 16,3% entre 2015 e 2021 (Abraceel, 2022), fazendo com que a conta de luz seja cada vez mais um peso no bolso da população de baixa renda.


Outra limitação pode ser observada através do “Sistema de Bandeiras Tarifárias”, uma metodologia criada em 2015 pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), para a composição do custo do fornecimento de energia elétrica. A matriz energética do país é predominantemente hidrelétrica, porém quando a produção da matriz não é suficiente para suprir as necessidades do país é preciso que outras fontes sejam ativadas, modificando o valor da energia que será consumida. Segundo a ANEEL (2022), no sistema de bandeiras temos os seguintes valores, para cada 100kWh consumidos, em primeiro lugar a verde, no valor de R$ 1,420, que é o valor referente a produção matriz e que não sofre alteração, em segundo lugar a amarela, no custo de R$ 2,989, em terceiro lugar a bandeira vermelha1, custando R$ 6,500, e por último a bandeira vermelha2, por R$ 9,795. Mensalmente, a ANEEL divulga ao mercado a bandeira que será utilizada para cada região e as distribuidoras, então, informam aos consumidores qual será a tarifa do mês seguinte. Esse sistema causa grande instabilidade pois de um mês para o outro a conta de luz pode ser quase sete vezes mais cara. Para piorar a situação, independente da quantidade de energia consumida, o morador terá sempre que pagar um valor mínimo, que é chamado de taxa de manutenção. Em 2022 foi estabelecido que esse valor será de 100 reais.


Essas circunstâncias adversas desenvolveram uma “cultura do não pagamento” nas favelas, onde os moradores obtêm sua energia diretamente dos postes de luz pública, criando um sistema onde sua casa terá eletricidade sem que o morador tenha que pagar por isso. No entanto, existem muitas desvantagens nesse sistema pois sem medidor, os moradores não podem ter conta de luz e, consequentemente, não têm um comprovante de residência reconhecido pela prefeitura. Com isso são impedidos de abrir conta em banco ou mesmo receber correspondência, além desse sistema fazer com que aumente a quantidade de energia que se perde na rede e esses moradores ficam vulneráveis a eletrocussão e incêndio, devido a sobrecargas no transformador.


O sol é uma fonte inesgotável de energia e uma excelente solução para alcançar a descarbonização por meio de energia fotovoltaica, além da enorme capacidade Brasileira de produção por apresentar um dos maiores índices de insolação do mundo. O PDS mostra a preocupação com a produção de energia limpa e acessível e apresenta um foco nas “metas para implantar energia solar distribuída”, porém não apresenta uma preocupação ou propostas para as comunidades. No entanto, a resolução 482/12 da ANEEL possibilita a implementação destas fontes em favelas, visto que a principal condição para a sua implementação é o local apresentar boas condições para a produção, tais como local ensolarado e estrutura para a tal (Pinho., Galdino, 2014). A produção independente por comunidades impactaria em diferentes esferas dos ODS e de cunho socioambiental, tais como geração de renda, capacitação de pessoas, geração de emprego temporário e permanente, engajamento local, entre outros. Um projeto dessa natureza ajudaria não só a solucionar diversos problemas locais, mas também no fato de diminuir as perdas na rede e, como consequência, exigiria menos produção de energia por fontes mais poluidoras.


Todas as comunidades do Rio de Janeiro possuem características diferentes, identidade própria, e cada local, ator e líder comunitário precisa ser considerado, o que torna um pouco mais complexa a formulação de uma solução única para todas as comunidades cariocas. A segurança e localização costumam ser fatores determinantes quando o assunto é viabilização e investimento financeiro em favelas. Com esse pensamento que nasceu a necessidade ter um estudo de caso para analisar a real possibilidade da implementação de tal projeto dessa proporção. As comunidades localizadas na zona sul da cidade costumam ter maior visibilidade e atenção do governo por estarem localizadas onde se concentram as principais atividades turísticas e culturais, fazendo com que essa área tenha o menor percentual de assentamentos informais e ao mesmo tempo esses apresentarem o maior número projetos e investimentos. Para uma análise mais eficaz, o ideal era escolher uma comunidade pequena, com uma boa receptividade de pessoas externas, mas que tivesse mais características em comum com a maioria das outras comunidades cariocas. O complexo Paula Ramos, apesar de ser de pequeno porte, se trata do conjunto de quatro comunidades e surgiu como uma excelente opção para esse estudo. Localizado no bairro do Rio comprido, centro da cidade, região que concentra 35% das favelas da cidade (Cavallieri and Vial, 2012), e se mostrou desde o início abertos para receber propostas de não moradores do local. O projeto de energia comunitária "ILUMINA Complexo Paula Ramos" (ICPR) nasceu em conjunto com a associação de moradores como uma iniciativa dos próprios moradores, o que já demonstrou um grande comprometimento local e uma forte cultura empreendedora.


O projeto veio com diversos desafios, principalmente em relação a obter dados confiáveis sobre o local e principalmente sobre o consumo de energia dos moradores. Foi necessário fazer uma pesquisa para levantamento de consumo e entender as maiores dificuldades locais e, duas informações se mostraram de grande importância e relevância. A primeira foi o fato de 70% dor moradores que participaram desse levantamento, não tinham um medidor de luz instalado, porém 57% dessas habitações não o tinham, pois, ou o relógio estava quebrado e a companhia nunca foi concertar, ou mesmo nunca tiveram seus relógios instalados, mesmo com os moradores fazendo vários pedidos para o mesmo. A segunda foi o fato de muitos moradores não terem consciência de gasto de energia, ou do impacto da escolha de eletrodomésticos mais eficientes, como lâmpadas, geladeiras entre outros. Por esse ser um aspecto mais complicado de se lidar, principalmente por muitos moradores não terem a possibilidade de escolha, o projeto se dedicou a ao menos propagar o conhecimento na esperança de que, os que hoje conseguem fazer escolhas conscientes de consumo, saibam como faze-las. Foram feitas palestras, oficinas e encontros promovidos pela associação de moradores, juntamente com os parceiros, a empresa Mais Solar e a ONG Engajamundo, sobre esses assuntos além de outras temáticas dos ODS.


A produção de energia solar descentralizada nas favelas, com seus moradores assumindo o papel de protagonistas, ainda apresenta muitos desafios, principalmente por se tratar de um grande investimento financeiro. Com isso esse projeto foi dividido em algumas fases para conseguir uma analise mais precisa. O ICPR tem como foco inicial a capacitação dos moradores da comunidade para que os futuros painéis fotovoltaicos sejam instalados e possam ser mantidos, usando mão de obra local. Com isso, a comunidade terá maior interação, conhecimento e independência utilizando o novo sistema, além de promover mais oportunidades de empregos para os moradores locais. A Mais Solar é uma parceria fundamental, não só pela capacidade e experiência da empresa, como também por um dos membros ter sido residente do Complexo Paula Ramos, reforçando ainda mais o conceito de energia comunitária.


Para garantir que os moradores tenham sempre energia, mesmo que em momentos de blackout, serão instalados três totens solares com tomadas para carregar celulares, ligar equipamentos de som, entre outros. Terão nele pequenas explicações sobre o sistema e técnicas para economizar energia. A ideia de uma estação de recarga com energia solar que o projeto desenvolveu veio também como uma forma de resolver um problema pontual, atrair mais pessoas para a tecnologia, aumentar o conhecimento da mesma e estreita os laços entre os moradores.


A continuação do projeto acontecerá de forma gradual já que até o momento é muito difícil calcular a quantidade de energia que precisará ser produzida para ser utilizada pela comunidade. Cada estado no país possui uma forma diferente de lidar com a produção de energia independente. No Rio de Janeiro só é possível converter o excesso de energia produzida em crédito na conta de luz, que é valido por até cinco anos. Como são quatro comunidades diferentes, fazer um projeto menor e ir utilizando esses créditos de acordo com a necessidade local parece ser uma boa ideia para começar, principalmente porque um projeto maior, hoje, exigiria um investimento muito alto e provavelmente acabaria gerando uma grande quantidade de excedente. O ICPR chegou a fazer uma reunião com a distribuidora local, conversado sobre a possibilidade desse possível excedente cobrir o custo da tarifa mínima e, assim, estimular que mais moradores quisessem fazer parte do projeto. Porém ainda existe uma barreira muito significativa em relação a confiança da companhia com o local do projeto. Com isso, a ideia é fazer um projeto piloto, a princípio menor que o necessário, que permitirá uma melhor compreensão sobre a implementação deste novo sistema, como viabilidade, problemas, limites, qualidades, entre outros. Também permitirá, no futuro, estendê-lo ao resto da comunidade com uma estratégia melhorada e nos daria dados concretos para conseguir conversar melhor com a distribuidora local sobre como fazer um trabalho mais eficiente em relação a realidade do complexo.


Como conclusão, o cooperativismo em favelas se apresenta como uma participação democrática e solidária para se alcançar uma prosperidade conjunta com um impacto muito positivo na qualidade de vida e sustentabilidade local. Uma forma de resolver problemas que já se arrastam há décadas de forma harmônica, equilibrada, sem distinção de gênero, idade, cor da pele, orientação sexual ou qualquer outra discriminação, e com integração balanceada do homem e da natureza mesmo dentro de uma grande cidade como é o Rio de janeiro. Essas comunidades demonstram uma grande capacidade de resiliência e pró-atividade, nós só precisamos finalmente deixar que eles usem a sua voz e mostrem toda a sua capacidade de viabilizar seus projetos também no campo macro.


Fontes:
- Associação Brasileira dos comercializadores de energia (Abraceel), (2022): Conta de luz sobe mais que o dobro da inflação no mercado cativo. Disponível no link: https://abraceel.com.br/blog/2022/01/conta-de-luz-sobe-mais-que-o-dobro-da-inflacao-no-mercado-cativo/#:~:text=A%20Abraceel%20realizou%20levantamento%20que,aumento%20de%20237%25%20da%20infla%C3%A7%C3%A3o. [visto em: 07 de novembro, 2022]
- Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), (2022): Valores das bandeiras tarifárias são atualizados para o período 2022-2023. Disponível no link: https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2022/valores-das-bandeiras-tarifarias-sao-atualizados-para-o-periodo-2022-2023. [visto em: 14 de dezembro, 2022]
- Cavallieri, F., & Vial, A. (2012): Favelas na cidade do Rio de Janeiro: o quadro populacional com base no Censo 2010. INSTITUTO MUNICIPAL DE URBANISMO PEREIRA PASSOS, IPP. Disponível no link: http://urbecarioca.com.br/wp-content/uploads/2019/04/download-3190_FavelasnacidadedoRiodeJaneiro_Censo_2010.pdf. [visto em: 14 de dezembro, 2022]
- Data.Rio (2019): Habitação e Urbanismo, Rio em Síntese, 2019. INSTITUTO MUNICIPAL DE URBANISMO PEREIRA PASSOS, IPP. Disponível no link: https://www.data.rio/pages/rio-em-sntese-2. [visto em: 7 de novembro, 2022]
- Governo do Rio de Janeiro, (2021): Plano de Desenvolvimento Sustentável e de Ação Climática (PDS) completo. Disponível no link: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/12937849/4327050/PDS_COMPLETO_0406.pdf. [visto em: 7 de novembro, 2022]
- PINHO, J. T.; GALDINO, M. A. (2014): Manual de engenharia para sistemas fotovoltaicos. CEPEL - CRESESB. Disponível no link: https://www.portal-energia.com/downloads/livro-manual-de-engenharia-sistemas-fotovoltaicos-2014.pdf. [visto em: 10 de dezembro, 2022]