A presença indígena na cidade de Manaus
Os dados do Censo Indígena 2010 indicam que dos 817.963 indígenas autodeclarados do Brasil, 315 mil de 300 etnias já vivem em cidades brasileiras, em especial, em todas as capitais e em todos os estratos de cidades e regiões, perfazendo 36,2% do total dos indígenas do país. Essa presença se soma à efervescência das lutas identitárias onde múltiplas etnias protagonizam ações para se fazerem conhecer e serem reconhecidas como portadoras de direitos e de políticas diferenciadas, que precisam ser implementadas por diferentes instâncias de governo. No entanto, setores governamentais, empresas ligadas ao agronegócio, grandes proprietários de terra e veículos de comunicação tentam deslegitimar essas ações, afirmando que não se trata de índios, mas de descendentes ou de “índios misturados”, “falsos índios”, dentre outros rótulos negativos, que geram obstáculos na relação entre o campo da política e esses agentes demandantes de reconhecimento étnico. Na percepção dos grupos dominantes a questão indígena é coisa do passado que ficou circunscrita ao período do “descobrimento” do Brasil no século XVI.
Ao contrário disso, chamamos atenção para os mecanismos sociais que permitem aos indígenas manterem os laços sistemáticos com a aldeia e a afirmação de sua identidade étnica na cidade. Preservar aspectos do modo de vida apreendido na aldeia como o uso da língua e dos rituais; a socialização dos filhos com as lendas e danças; o fazer o artesanato; praticar os hábitos alimentares; receber os parentes vindos para a cidade e manter contato sistemático com aqueles que ainda moram na aldeia são indicadores do pertencimento étnico. O que implica na organização indígena em torno das associações étnicas, multiétnicas e de gênero e na luta por políticas diferenciadas no contexto urbano. Estas situações contradizem o suposto desaparecimento indígena dos cômputos populacionais e revelam, em contrapartida, a necessidade de políticas públicas tomando por base as reivindicações identitárias. São aspectos relevantes acerca das múltiplas etnias que vivem na cidade de Manaus, no estado do Amazonas, na Amazônia brasileira que apresentamos, como resumo, nesse pequeno artigo.
Manaus é a cidade mais populosa da Amazônia brasileira com quase 2 milhões de habitantes (IBGE, 2010), distribuídos em 63 bairros por uma área de mais de 11 mil km². Suas principais atividades econômicas estão voltadas para a indústria por conta da Zona Franca de Manaus, além do comércio, serviços e do turismo internacional. Mas o que nos chama especialmente a atenção é a diversidade étnica nesta metrópole. Os dados do Censo 2010 apresentam 4.020 indígenas autodeclarados, representando 92 etnias, que falam 36 diferentes línguas distribuídos em 62 bairros, mas as organizações indígenas fazem referência a 20 mil indígenas. Em nosso trabalho tivemos a oportunidade de realizar a construção de mapas a partir da auto-identificação dos indígenas. Este material foi coletado por meio de oficinas que reuniram 120 indígenas de 20 etnias.
A cartografia que elaboramos com integrantes da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME), em 2015, identificou 34 etnias em 51 bairros, sendo elas: Munduruku, Tikuna, Sateré-Mawé, Desana, Tukano, Miranha, Kaixana, Baré, Kokama, Apurinã, Tuyuka, Piratapuya, Kamaiura, Kambeba, Mura, Maraguá, Baniwa, Macuxi, Wanano, Tariano, Bará, Arara [do Aripuanã], Karapãna, Barasana, Anambé, Deni, Kanamari, Katukina, Kubeo, Kulina, Marubo, Paumari, Arara do Pará e Manchineri. No que se refere à língua, os dados indicam 19 línguas faladas - Munduruku, Tikuna, Mawé, Mura,Desano, Tukano, Baré, Língua geral amazônica (Nhengatu), Piratapuya, Wanano, Apurinã, Tariano, Kaixana, Kokama, Karapãna, Tuyuka, Barasana, Baniwa e Kambeba - em 41 bairros.
Esses dados nos informam que a presença indígena na cidade não é residual, temporária ou concentrada em alguns pontos específicos. Ao contrário, é significativa e representativa da sua dispersão das etnias pela maioria dos bairros da capital. Também observamos a precariedade das condições de vida desses indígenas em bairros da periferia, destituídos dos serviços de saneamento e infraestrutura e a insuficiência no atendimento em educação e saúde, bem como da moradia nas margens de igarapés, áreas de encostas, terrenos irregulares ou em ocupações sob a ameaça constante da ação policial ou de traficantes, da violência e das medidas judiciais de reintegração de posse da terra.
As associações étnicas, multiétnicas e de gênero
As organizações indígenas na cidade funcionam como espaço de articulação política das famílias e etnias, de práticas comuns materiais e simbólicas, de lutas identitárias e se constituem como interlocutoras dos órgãos governamentais. Convívio este possibilitado por reuniões sistemáticas de cada etnia, nas festividades das associações onde convidam os parentes para compartilharem dos rituais, nas atividades da Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME) ou na mobilização coletiva na busca dos direitos indígenas, conforme trataremos com mais detalhes a seguir.
Nessas associações funcionam as “escolas indígenas”, denominadas por eles de “centros culturais”. Nelas as crianças aprendem a língua materna, canto, dança, hábitos alimentares, rituais, pinturas e artesanato em horário diferente da escola do ensino regular. É o espaço de ressocialização das crianças e jovens nos modos de vida indígena e a reafirmação dos aprendizados pretéritos da aldeia na cidade. As associações constituem-se também em um espaço importante na produção do artesanato. O trabalho realizado resulta em bolsas, pulseiras, colares, brincos, redes, porta-jóias, tapetes, cestinhas e gargantilhas, feitos de tucumã, jarina, inajá, palha, cipó, açaí, dentre outras matérias-primas.
A Coordenação dos Povos Indígena de Manaus e Entorno (COPIME), criada em 2011, funciona com “a mãe das associações”, conforme afirmou seu coordenador da etnia Sateré-Mawé. Em torno dela estão associadas 47 organizações indígenas da cidade de Manaus e 12 do entorno (cidades integrantes da região metropolitana), representando aproximadamente 3 mil indígenas. Ela tem um papel de grande relevância organizativa em torno da luta por políticas específicas e diferenciadas, além de servir de espaço de encontro e diálogo entre as diferentes etnias e suas organizações representativas, não só da cidade de Manaus, mas da Região Metropolitana, e que ainda inclui os municípios de Rio Preto da Eva, Itacoatiara, Presidente Figueiredo, Iranduba, Manacapuru, Novo Airão e Careiro da Várzea que, estatutariamente vêm sendo chamado por ela, de “entorno”.
As associações étnicas, multiétnicas e de gênero têm uma ação mais pontual, específica e localizada. A COPIME, por sua vez, aparece como a organização do encontro desses pedidos, canalizando anseios, aspirações, bem como demandas em torno de um projeto coletivo identitário mais amplo. Ou seja, as políticas diferenciadas para os indígenas na cidade de Manaus e seu entorno. Também observamos simultaneamente as articulações políticas realizado por ela. São propostas de ordem estadual, mesorregional e nacional em torno da luta contra o Projeto de Emenda Constitucional, a PEC 215 - que representa uma grande ameaça para a demarcação das terras indígenas, uma vez que transfere das mãos do governo federal para o legislativo essa prerrogativa -, e contra o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que autoriza a mineração em terras indígenas. Assim como, sua proximidade de entidades mais gerais como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Federação das Organizações Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a participação em manifestações nacionais em torno da pauta indígena unitária. Isto remete também à luta simultânea em diferentes escalas de ação e à articulação de cooperação com universidades, entidades religiosas e organizações não governamentais.
Organizar os indígenas, reunir as lideranças, identificar os problemas, planejar as atividades, formar comissões, negociar com os governantes, realizar audiências públicas e seminários, ocupar a FUNAI e apresentar as reivindicações estão entre os repertórios acionados na ação política, bem como os pedidos de preparação política dos agentes públicos para lidar com as demandas identitárias estão entre as atribuições da COPIME.
Dessa forma, nos afastamos das proposições que opõem aldeia e cidade, urbano e rural, ou que afirmam que o indígena na cidade perde a sua identidade. Aqui não nos referimos ao índio “genérico”, porque os indígenas são de múltiplas etnias, falam muitas línguas, mantêm diversas práticas rituais, alimentares e arquitetônicas, se organizam politicamente e lutam por políticas diferenciadas nas áreas de saúde, educação, moradia e reivindicam acesso à universidade e ao mercado de trabalho. Também mantêm laços fortes com o lugar de origem em visitas sistemáticas entre parentes, em deslocamentos que têm como fim estar ora na cidade, ora na aldeia.
Considerando o contexto mais amplo da questão indígena, destacamos que o avanço das atividades econômicas de grande impacto sobre as áreas indígenas, como mineração, hidrelétricas, soja, exploração ilegal de madeira, construção de estradas e a grilagem de terra acabam por empurrá-los para as periferias das cidades. Assim, podemos pensá-los como um “novo” fenômeno da urbanização brasileira e não apenas como um movimento residual, pendular e temporário, que precisam ser consideradas pelas agências e políticas governamentais e pelo campo dos estudos urbanos para que se possa inscrever no âmbito das questões urbanas a presença indígena em cidades brasileiras de forma a iluminar a reflexão tomando por base o pertencimento étnico.
José Carlos Matos Pereira
Sociólogo e Doutor em Ciências Sociais pelo PPCIS/UERJ. Atualmente realiza pesquisa no Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE/UFRJ).
Para mais detalhes ver o site: https://www.indigenasemcidades.com/