Desafios atuais para uma comunicação política democrática

Paulo Maldos
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

Vivemos hoje no Brasil uma situação inusitada e imprevista, da extrema-direita ter chegado ao poder através de eleições regulares e governar com relativa base social.

Para compreendermos o processo que gerou a situação atual, precisamos analisar o que ocorreu no país e no continente depois do fim das ditaduras militares, após os anos 80. Preocupadas com a eventual hegemonia da esquerda no sistema político, via eleições livres, as elites norte-americanas desenharam o que se convencionou chamar de “guerra de baixa intensidade”, ou seja, afastaram os cenários anteriores de golpe de Estado através da mobilização militar para a construção de cenários novos, onde a guerra da informação, a “destruição de imagem” dos opositores e a criação planejada de lideranças ocupavam lugar central na estratégia política.

A chegada da internet, sua disseminação na sociedade, a constituição paulatina das redes sociais vieram reforçar esse processo de criação de um novo campo de disputa política: o mundo virtual. A massificação da telefonia celular e a sua consolidação como fonte primária de comunicação e acesso à informação cotidiana gerou o mundo virtual como contraponto e alternativa cognitiva à própria realidade.

A aplicação dos conceitos da “guerra de baixa intensidade” aos processos eleitorais, associada às novas tecnologias digitais, seria apenas questão de tempo. A partir do laboratório bem sucedido das eleições norteamericanas, que elegeram Donald Trump, a experiência foi trazida ao Brasil e resultou também na eleição de Bolsonaro.

Faz parte dessa estratégia o uso ilimitado das “fakenews”; a destruição de imagem dos adversários; a construção positiva da imagem das lideranças que se deseja promover; o envio dirigido de “fakenews” de acordo com o perfil de cada consumidor da propaganda política e assim por diante.

O uso abusivo dessa estratégia política contribuiu muito para o sucesso eleitoral do presidente brasileiro e, no período pós-eleitoral, momento de gestão da governabilidade política do presidente eleito, observamos a manutenção dessa mesma estratégia, marcada por uma ofensiva permanente e por uma interlocução direta com sua base social, cada vez mais fidelizada e radicalizada.

O campo popular e democrático, constituído pela sociedade civil, pelos movimentos populares e sindicais, pelas ONGs, pelas igrejas progressistas, pelos setores democráticos da política partidária, não acompanhou este processo de manipulação digital e muito menos conseguiu se contrapor a ele.

Em termos gerais, as organizações do campo popular mantiveram, nos últimos anos, suas estratégias tradicionais de comunicação com as bases e com a sociedade, utilizando-se dos instrumentos conhecidos e que haviam sido úteis para o avanço de pautas e conquistas em termos de direitos sociais. No entanto, estas próprias conquistas, sem a construção de narrativas que as explicassem perante a sociedade, causaram o distanciamento dessas organizações das suas bases de origem, tornando-as expostas à ofensiva da extrema-direita, com suas narrativas e estratégias de destruição e construção de imagens, com sua “guerra cultural”.

Por não terem se dado conta destas estratégias os setores populares não criaram contraestratégias; não fizeram denúncias ao poder público; denúncias feitas no período eleitoral recente não prosperaram num sistema judiciário não capacitado para lidar com a realidade virtual e comprometido políticamente com o conservadorismo.

Com baixa capacidade de resposta, o campo popular teve sua potência política reduzida e tem vivenciado a multiplicação de “bolhas sociais”, onde crescem exponencialmente guetos culturais, políticos, identitários, geracionais, raciais, de gênero, de visão de mundo, enfim, de toda ordem.

Está colocado, portanto, um desafio estratégico, em termos de comunicação social e política, para os setores democráticos e populares da sociedade brasileira: o da superação deste cenário desagregador, constituído pelas “bolhas sociais” e seu correspondente isolamento e alheamento com relação à realidade vivida pelas maiorias populares de nosso país.

Voltar a comunicar-se com a população, voltar a escutá-la e compreendê-la e voltar a ser escutada e compreendida por ela passou a ser uma necessidade para o campo popular e para a própria existência da democracia.

A construção de novas estratégias de comunicação

Os movimentos populares com mais experiência organizativa e capilaridade nos territórios, com lideranças qualificadas e formulação política consistente têm procurado superar as fragilidades na comunicação digital e na incidência política.

Aqui podemos destacar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o conjunto de movimentos populares que vêm se articulando na Frente Brasil Popular e na Frente Povo Sem Medo. Diversas iniciativas vêm ocorrendo também no âmbito dos Povos e Comunidades Tradicionais, embora mais localizadas por organização ou território.

Com relação às duas frentes, estas vêm construindo coletivamente uma prática e uma narrativa com ênfase na unidade e na solidariedade entre os setores populares, definindo estratégias e planejando ações conjuntas que dialoguem com suas respectivas bases sociais e com a sociedade brasileira.

Paralelamente à formação e intervenção política, destacamos a busca pela formação técnica e a apropriação das ferramentas de comunicação digital, tanto de equipamentos, acesso à internet, manuseio de plataformas e programas e a criação de espaços virtuais para tomadas de decisão coletivas.

A tomada de consciência da falta de experiência e uso das novas ferramentas de comunicação digital fez com que se definisse essa nova área de intervenção política como um “novo trabalho de base”, uma atualização da Educação Popular.

Além dos movimentos populares, diversas entidades de criação mais recente realizaram experiências com impacto no debate público, na formação de consciência, nas denúncias sobre redução de direitos e na construção de alternativas políticas para o país. Entidades como Midia Ninja, Midia India, Intervozes, Levante Popular da Juventude e Jornalistas Livres têm sido protagonistas de uma nova comunicação popular criativa e com forte incidência política.

Nestes últimos anos emergiu no campo popular um conjunto de experiências democratizantes a partir da comunicação política digital e, com estas, novas narrativas que desconstroem o discurso autoritário da extrema-direita, incluindo conceitos manipulados de “comunismo”, “ideologia de gênero”, “destruição da família e da pátria”, “marxismo cultural”. Por outro lado, estas novas narrativas revelam um país culturalmente diverso, politicamente plural, participativo, solidário e que busca o exercício da democracia em todos espaços da sociedade.

Torna-se fundamental que as iniciativas de articulação da sociedade civil, envolvendo movimentos populares e entidades militantes da área de comunicação, ganhem força e continuem formulando alternativas nos espaços de comunicação política, o que pressupõe participação de base e debate sobre propostas de sociedade, a partir dos territórios e das comunidades urbanas e rurais organizadas.

A partir dessa base social articulada é possível avançar na construção de alianças com setores políticos e instituições que sejam sensíveis às demandas e propostas dos setores populares, criando espaços de consulta, diálogo, elaboração de políticas públicas e de defesa e promoção de direitos sociais.

O desafio central para a retomada da democracia no Brasil está no fortalecimento e enraizamento da participação coletiva nos territórios, com suas novas ferramentas digitais e suas novas narrativas, exercendo o controle social sobre o Estado e o protagonismo da sociedade na construção de alternativas políticas para o país.

Paulo Maldos

O autor

Psicólogo e Secretário Executivo do CAIS, assessora movimentos populares, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.