A crise política brasileira: perspectivas
Explicá-la, para além dos clichês ideológicos de esquerda e de direita que ultimamente vem dando o tom do debate é uma tarefa difícil, quanto mais quando esta explicação é direcionada para um público estrangeiro. Igualmente difícil é prever qual será o desdobramento imediato desta crise e sua resolução em um futuro próximo.
A peculiaridade histórica do sistema político brasileiro, em grande parte, é um dos fatores explicativos para a crise atual. Apesar do Brasil ter conhecido vários regimes políticos e constitucionais ao longo de sua história como nação independente, há um constante conflito entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, sendo o primeiro, via de regra, o lugar da defesa de privilégios dos grupos economicamente dominantes que tendem ao conservadorismo social e político, enquanto o segundo tem sido a expressão de políticas que visam a modernização socioeconômica do país. Estas políticas modernizantes patrocinadas pelo Poder Executivo nem sempre se pautaram por valores democráticos e socialmente inclusivos. Quase sempre, se utilizaram de medidas de força e centralização autoritária para subordinar a força inercial de elites econômicas e políticas locais e regionais em nome de um projeto nacional mais integrado.
Paralelamente a este sistema político, há uma sociedade em movimento, organizada a partir de múltiplas demandas democratizantes e inclusivas, desde pelo menos o final do século XIX, mas que nunca conseguiu consolidar uma cultura republicana democrática que se expressasse em um grande partido de origem popular. Os partidos de tradição radical ou socialista nunca criaram raízes na sociedade, até ao menos a formação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980, expressão das lutas sociais e populares por democracia, ainda sob o regime militar.
A compreensão da conjuntura política complexa que culminou no impeachment de Dilma Rousseff não deve nos afastar da análise de alguns impasses estruturais e essências na vida política, social e econômica brasileiras, fundamentais para compreender o que está realmente em jogo nesta crise atual.
Do ponto de vista político, percebe-se o desgaste de um modelo chamado pelos especialistas de “Presidencialismo de Coalizão”. Este sistema, em grande parte fruto do equilíbrio tenso entre Legislativo e Executivo sacramentado pela Constituição de 1988, exige que o Presidente eleito forme maiores parlamentares em um sistema partidário fragmentado e, via de regra, fisiológico, que se agrupa por interesses materiais diretos na ocupação de cargos e benesses, e não a partir de programas de governo. O sistema de voto no Brasil, majoritário para o Poder Executivo e proporcional para o Poder Legislativo, sem cláusulas de barreira ou foco distrital, estimula este sistema. O resultado é que temos uma mistura confusa e informal dos princípios políticos de um regime parlamentarista - com capacidade de veto real do congresso sobre o Poder Executivo – sem uma cultura partidária e cláusulas constitucionais que deem estabilidade política ao sistema. A deposição de Dilma foi uma típica saída parlamentarista – o veto do congresso à chefe do Poder Executivo – atuando em um regime presidencialista tradicionalmente forte, o que transformou uma crise de governo em uma crise institucional, com ares de golpe de Estado. A saída para este impasse seria uma ampla reforma política, que atenuasse os efeitos da fragmentação partidária, aprimorasse os processos eleitorais (incluindo o financiamento de campanhas), estimulasse a fidelidade partidária dos eleitos, implantasse o voto distrital misto, entre outras medidas. Todos sabem o caminho, mas ninguém parece disposto a trilhá-lo, nem a oposição social conservadora que saiu às ruas contra a corrupção (mais preocupada em expressar seu antipetismo visceral e elitista), nem o sistema político ancorado no parlamento (acomodado nos seus interesses fisiológicos e corporativos).
A estrutura social brasileira também apresenta desafios importantes à estabilidade do sistema político e à governabilidade. Há um “passivo” histórico de políticas sociais, agravado por uma secular exclusão política e social que consolidou a sociedade brasileira como uma das mais desiguais do mundo, em que pesem as conquistas dos últimos anos. Os serviços públicos são deficientes, os impostos são regressivos (penalizando os consumidores e os assalariados, e preservando as grandes fortunas, propriedades e rendimentos financeiros) e a classe média com algum recurso se vê onerada pela compra de serviços privados caros para suprir direitos básicos, como saúde e educação o que explica, em parte, seu antigovernismo visceral. Ao mesmo tempo, esta mesma classe média, nos últimos anos, está vendo seu sistema de privilégios sobre os mais pobres - materializada no uso de mão de obra popular para os serviços domésticos e privados - diminuir, fazendo aflorar seu elitismo social e culpando o PT por essa “inversão” social. Efetivamente, sob os governos petistas, os mais pobres passaram a fazer parte do orçamento do Estado brasileiro, além de terem mais acesso às outrora elitizadas universidades públicas (pelo sistema de cotas sociais e raciais), serem beneficiados por transferências de renda reais e pela consolidação de direitos trabalhistas que lhes eram vedados (um exemplo é a nova lei das empregadas domésticas). Algo que pode ser visto como natural em sociedades de tradição mais igualitária e democrática, no Brasil foi visto como ameaça às hierarquias sociais, dada a nossa herança escravocrata.
Finalmente, a dimensão econômica da crise apresenta grande complexidade, e, em parte, foge aos limites da política nacional. O Brasil, bem como a América Latina, é marcado atualmente, por uma economia reativa, dependente do mercado mundial de commodities e dos recursos financeiros na forma de investimentos produtivos ou especuladores. A nova divisão internacional do trabalho, consolidada na “Terceira Revolução Industrial” a partir dos anos 1980, foi fatal para os projetos desenvolvimentistas da América Latina. O Brasil, que tinha desenvolvido seu parque industrial com algum sucesso entre 1940 e 1980, perdeu o poder de competitividade de manufaturados simples ou complexos. O esforço de Lula e do PT de criar as “gigantes capitalistas nacionais” não sobreviveu à crise econômica internacional e aos especuladores oportunistas e predadores do mercado financeiro. Mesmo em áreas onde o país é competitivo, como o Petróleo extraído de águas profundas, a Petrobrás vem enfrentando grave crise financeira pois seus investimentos não tiveram contrapartida na manutenção do preço do petróleo. As distorções da política financeira praticada no Brasil compõem o outro lado da crise, marcada por uma política de juros altíssimos sob o pretexto de combater a inflação, questionada por alguns poucos economistas independentes do mercado financeiro, mas defendida pelos ortodoxos e think tanks dos grandes bancos nacionais e estrangeiros. A saída para esta crise é mais complexa, pois depende de uma conjuntura global na qual o Brasil não é um player central, apesar da importância econômica do país e do seu grande mercado interno potencial.
O fato é que a crise atual, pela complexidade que apresenta, só poderia ter uma saída pactuada na qual emergisse da sociedade brasileira um novo grupo orgânico que apresentasse saídas democratizantes, inclusivas e reformistas, e que se apresentassem claramente como opção para as eleições presidenciais de 2018. Isto é pouco provável, à esquerda e à direita.
À esquerda, o fracasso político do PT, tem reforçado a desconfiança acerca da viabilidade de uma esquerda parlamentar reformista em um ambiente social e político conservador e tradicionalmente golpista, como é o caso do Brasil. A dicotomia entre a esquerda institucional, legalista e parlamentar e os grupos de militância extraparlamentar tendem a se acirrar, podendo causar uma ruptura entre as bases sociais da esquerda e sua expressão partidária.
À direita, não se vislumbra a existência de um partido orgânico de tradições liberais e republicanas, que conciliasse alguma inclusão social, direitos políticos e um projeto nacional, ainda que calcado na defesa do “Deus-mercado”. Enfim, não há um horizonte liberal-democrático no Brasil, a não ser como mera retórica eleitoral ou como expressão de um liberalismo intelectual com pouco apoio social. Ao contrário, o resultado da crise e da oposição social ao petismo, foi o crescimento orgânico de uma direita ultraconservadora, baseada na manutenção da ordem social tradicional e na limitação de direitos fundamentais, calcada na ideologia da segurança pública, no fundamentalismo cristão e no agronegócio da grande propriedade rural, com amplo apoio no Congresso Nacional, onde é conhecida como bancada parlamentar BBB (“Boi, Bala, Bíblia”). Os liberais que se pensam “modernos”, agrupados em torno do núcleo histórico do PSDB, por exemplo, acabaram por ajudar a fomentar o antipetismo radical e, ao que parece, perderam o controle político e ideológico do processo em prol da direita arcaica que hoje se volta contra o próprio partido, atacando suas lideranças publicamente. O show de horrores proporcionado pelo Parlamento brasileiro por ocasião da votação pela continuidade do processo de impeachment de Dilma Rousseff em 17 de abril, foi a expressão cristalina desse novo quadro político brasileiro.
O governo interino que se seguiu, comandado pelo vice-presidente Michel Temer, apresenta uma nova composição de poder, marcada por uma combinação de ultraconservadorismo, fisiologismo partidário e liberalismo econômico pautado pelos grandes interesses financeiros. Se estas forças também estavam presentes na coalizão liderada pelos governos petistas, havia ainda algum anteparo ideológico e político que defendia políticas inclusivas e modernizantes. O reconhecimento deste anteparo, não quer dizer que devemos idealizar a era de governos petistas, os quais, a rigor, nunca conseguiram implementar um reformismo de esquerda consistente, sustentado por uma ampla base social e parlamentar, que superasse as mazelas históricas da política e da sociedade brasileiras. Neste sentido, a crise do petismo não foi meramente moral, mas também política e ideológica e deverá levar alguns anos até que seja plenamente debatida e compreendida.
Sob o governo de Michel Temer e a consequente extirpação do petismo e da esquerda do coração do poder de Estado, a tendência deverá ser a consolidação de uma agenda liberal na economia e conservadora na política. A agenda econômica aponta para grandes reformas no sistema previdenciário e escolar (no sentido de aprofundar a mercantilização destes setores), e na legislação trabalhista, no sentido da desregulamentação da relação entre patrões e empregados. A agenda política do novo governo aponta para a neutralização das políticas sociais e culturais de esquerda para matizar a exclusão social (políticas de aumento real de salário mínimo e transferências massivas de renda, política de cotas sociais e raciais em universidades, políticas de promoção de gênero, direitos humanos e defesa de minorias). Entretanto, essa operação não será fácil, pois a sociedade brasileira está amplamente mobilizada na defesa destas políticas. Na política externa, o novo governo aponta para o afastamento do Brasil em relação aos governos de esquerda da América Latina e ao Mercosul, e à tentativa de manter o equilíbrio entre a dependência histórica dos Estados Unidos, reafirmada no novo contexto, e a grande pressão do novo capitalismo chinês sobre a América Latina.
Os desdobramentos desta nova agenda e seu impacto nas eleições presidenciais de 2018 ainda são incertos. É possível que uma eventual melhora na economia, com o crescimento do PIB e dos níveis de emprego, consolide o apaziguamento da imprensa conservadora em relação ao novo governo, que também tem se mostrado mais hábil na relação com o Congresso Nacional. O esfriamento dos conflitos políticos dentro da elite poderá produzir, na sociedade, uma sensação de superação da crise, e estimular o eleitorado menos militante a confirmar esta agenda liberal nas próximas eleições, o que poderá se manifestar na escolha de candidatos do PMDB, do PSDB (ou numa coalizão de partidos liberais).
Por outro lado, não podemos esquecer que o ex-presidente Lula ainda lidera as intenções de voto, apesar de todo seu desgaste moral e político junto ao eleitorado de classe média, da perseguição da imprensa contra sua pessoa e seu legado, e do cerco judicial por conta das denúncias de corrupção, que não nos cabe examinar nos limites desse artigo. Tudo indica que é mais provável que ele não possa concorrer em 2018, pois claramente se aponta para a impugnação judicial de sua eventual candidatura à Presidência da República. À esquerda, não há mais ninguém com a mesma capacidade de articulação e voto de Lula, ainda que nomes como Ciro Gomes ou Marina Silva (apesar de seu discurso ideologicamente oscilante) possam ocupar algumas faixas deste campo partidário.
A extrema-direita poderá surpreender, com o avanço da candidatura do ex-militar Jair Bolsonaro apoiada em uma coalização de pequenos e médios partidos ligados ao fundamentalismo cristão de base evangélica, mas que também poderá agregar apoio político dos movimentos católicos ultraconservadores da classe média mais tradicional. Uma eventual vitória da extrema-direita aprofundará ainda mais a crise política brasileira e os conflitos entre sistema político e sociedade civil, pois a tendência é que muitos liberais percebam o que significaria um proto-fascista com apoio no fundamentalismo religioso no poder, e passem para a oposição.
O fato é que, sem uma agenda de inclusão social e de reforma política, que só uma esquerda democrática ou uma ampla coalização progressista que inclua os liberais-democráticos poderia sustentar, qualquer candidato que venha a vencer as eleições enfrentará problemas sérios. O manejo da “governabilidade” exige um tipo de liderança política que, salvo engano, não existe no quadro brasileiro atual. Em outras palavras, o impedimento da Presidente Dilma Rousseff, longe de ser o desfecho da crise, pode ser apenas mais um dos seus capítulos iniciais. Tudo vai depender do que acontecer nos próximos dois anos.