O teste da democracia brasileira
O Brasil não é um a ilha e sua democracia tampouco. Dizer que ela está em crise é um lugar comum. Coisa diversa é identificar as causas por trás da atual crise. Essa é tarefa necessária para podemos compreender o real significado das eleições que se aproximam.
É fato que a democracia representativa liberal parece estar em crise no mundo todo. Sua promessa de paz e prosperidade baseada no livre comércio e no livre fluxo de capitais é questionada em todos os cantos do mundo por forças políticas muitas vezes retrógradas, que apostam no nacionalismo, xenofobia e tradicionalismo como motivos de mobilização popular.
Após os discursos triunfalistas do começo da década de 1990, que colocavam esse regime político como a realização máxima da organização coletiva humana, o fim da história, muita coisa transcorreu. Boa parte dos analistas explicam essa crise como resultado do desmonte do Estado de Bem-Estar Social que se sucedeu após o fim da União Soviética. Foi como se o fim de uma “ameaça vermelha” crível tivesse levado a uma repactuação entre elites e classes sociais na qual aqueles do andar de cima não teriam mais que partilhar o mesmo quinhão de sua riqueza para garantir a paz social. Daí as renovadas ondas de reformas neoliberais diminuindo impostos, relaxando a regulação e promovendo privatizações. Se em um primeiro momento houve uma transferência massiva de empregos dos países desenvolvidos para os emergentes, causando nesses últimos uma melhora nos padrões de distribuição de renda, esse processo se esgotou em boa medida na primeira década do milênio. Ou seja, a desigualdade crescente entre haves e have-nots no mundo desenvolvido voltou a se intensificar nos países em desenvolvimento após um breve repouso.
Mas nem tudo é economia. A democracia é um regime que promete participação popular e autonomia moral individual na escolha de representantes e de plataformas políticas. E aí é que mora um problema fundamental da atual crise democrática mundial, ela é baseada em uma percepção generalizada dos cidadãos de que as opções eleitorais que lhes são apresentadas são incapazes de oferecer soluções para sua progressiva alienação econômica. Tal incapacidade é consequência do coquetel de políticas de disciplina fiscal que os governos são obrigados a adotar, seja por pressão de organismo multinacionais, grandes instituições financeiras ou nações poderosas, como os Estados Unidos ou a União Europeia. Assim, a alienação econômica anda de mãos dadas com a alienação política. Tamanha é a pressão exercida por esses “big players” que somente forças políticas autoritárias, nacionalistas ou mesmo fascistas são capazes de lhe oferecer oposição. Ou seja, do ponto de vista político, com raríssimas exceções, a saída para a armadilha armada pelo capitalismo financeiro sacrifício da própria democracia liberal.
No Brasil as coisas são ainda piores. Sofremos com o resto do mundo esse processo duplo de alienação causado pela dinâmica do capitalismo transnacional, mas tivemos também um processo interno de deslegitimação das instituições representativas que veio a se somar a esse. A Operação Lava Jato talvez seja sua faceta mais publicamente reconhecida, mas ela é apenas uma peça em todo o processo, que começou muito antes com a atitude de perseguição política que a grande imprensa brasileira começou a mover contra o PT e Lula já em seu primeiro mandato como Presidente do Brasil.
Brasil tem um sistema de mídia altamente oligopolizado por empresas privadas familiares, entre as quais o Grupo Globo é de longe o mais extenso e poderoso. Com o PT instalado no governo a partir de 2002, qualquer denúncia de corrupção contra membros do PT e aliados passou a ser explorada pela imprensa com fervor acusatório. Aos poucos, a escandalização da política começou a surtir efeitos concretos, funcionando como uma pressão efetiva sobre o judiciário. O “escândalo” do Mensalão de 2006 foi o primeiro grande exemplo de um caso mal esclarecido e decidido nos tribunais com base em alegações e evidências duvidosas, além de ter dado início a uma mudança de paradigma do direito brasileiro, com a inversão do ônus da prova em desfavor dos acusados.
No ano eleitoral de 2014 surgiu o escândalo da Lava Jato, que viria a ter consequências terríveis para a democracia brasileira, entre elas o impeachment de Dilma Rousseff, a condenação e prisão de Lula, a cassação de sua candidatura em 2018 e a vitória de , Bolsonaro naquele pleito. Lula teve todas suas condenações revertidas, mas quando isso ocorreu, Bolsonaro já estava instalado como presidente da república.
A Lava Jato foi produzida pela comunhão de uma imprensa altamente politizada, de instituições judiciais corrompidas e de forças políticas de direta, todos interessados em remover o PT do poder. Mas o importante aqui é notar como isso foi feito do ponto de vista da produção da opinião pública. A associação massacrante, por sua alta intensidade, da política com corrupção, apesar de ter como alvo primordial o Lula e o PT, acabou por transbordar para todo o sistema político. Não é à toa que mesmo o PSDB, partido que foi grande entusiasta da Operação, sofreu fragorosa derrota na eleição de 2018, diminuindo consideravelmente seu número de deputados e obtendo apenas 4% do voto para presidente.
A forte associação da política com corrupção é lugar comum em todas as pesquisas qualitativas feitas pelo Laboratório de Estudos da Mídia e Esfera Pública (LEMEP). A expressão mais utilizada é “os políticos são todos ladrões” e vem normalmente associada com uma postura de ceticismo ou mesmo de desprezo pelas instituições democrática e completo desânimo perante a possibilidade de mudar algo a partir do voto.
A eleição que se aproxima é uma oportunidade impar para o país reverter, pelo menos em parte, essa onda de cinismo e pessimismo que assola sua democracia. Lula, o candidato à frente das intenções de voto, representa a promessa de um retorno a um passado virtuoso, quando o país crescia economicamente, diminuía a desigualdade social e ocupava lugar de prestígio no cenário da política internacional. Se ele vai conseguir cumprir essa promessa, caso eleito, é outra questão.
O governo Bolsonaro promoveu um desmanche na capacidade administrativa do estado brasileiro, o resultado foi a crise econômica, destruição ambiental sem precedentes, o retorno da pobreza extrema e da fome e o caos administrativo que produziu, entre outras coisas, um recorde de 650 mil mortes pela COVID-19. As dívidas social e ambiental criadas são imensas.
Pior, o fenômeno eleitoral Bolsonaro ajudou a eleger em 2018 muitos parlamentares e governadores alinhados com a pauta regressista do presidente, a maioria deles aliada ao agronegócio e ao lobby evangélico em prol dos valores da família tradicional. Mesmo que dessa vez isso não se repita, essa gente não será toda varrida do mapa.
Em suma, mesmo se vencer, e isso não são favas contadas, Lula terá enfrentar a tarefa de reconstruir o Brasil em parceria com uma maioria congressual contaminada com as sobras da agenda bolsonarista. De quebra, Lula terá que lidar com as pressões advindas da grande imprensa e do capital financeiro para se curvar à agenda de diminuição do gasto público e promoção de mais privatizações. Não é tarefa fácil. Por outro lado, não há alternativa para o líder petista ou para a democracia brasileira.
Sobre o autor João Feres Júnior:
Doutor em Ciência Política pela City University of New York, Graduate Center (2003), é professor de ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da UERJ e coordenador do GEMAA – Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, do LEMEP – Laboratório de Estudos de Mídia e Espaço Público e do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB).