Para reverter a situação de desmonte que a extrema direita aprofundou no Brasil, só com o apoio de organizações sociais e políticas
No Brasil, organizações sociais com larga trajetória de trabalho político nos territórios ampliam articulações em defesa de seus modos de vida e no enfrentamento da crise climática.
Luis Inácio Lula da Silva, ex-sindicalista e fundador do Partido dos Trabalhadores (PT), assume pela terceira vez a presidência de Brasil com a promessa de dar um giro de 180° em relação à gestão de Jair Bolsonaro (2018-2022). No seu discurso da vitória, realizado em São Paulo, no dia 30 de outubro de 2022, Lula afirmou: “O desafio é imenso. É preciso reconstruir este país em todas as suas dimensões”. Além da fome, que atinge 33,1 milhões de brasileiras e brasileiros, muitos são os retrocessos a serem afrontados, como os desmontes de políticas sociais, ambientais e de direitos humanos. Diversas organizações sociais e políticas que apoiaram Lula vêm contribuindo com propostas concretas para eliminar alguns destes retrocessos. Entre as quais, destacamos o “Revogaço”, diagnóstico sobre as diversas dimensões de destruição da democracia brasileira, impostos durante os quatro anos do governo Bolsonaro. Este estudo -elaborado pelas fundações Lauro Campos e Marielle Franco, braço teórico do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e Rosa Luxemburgo, escritório de São Paulo- seleciona mais de 200 normas que podem ser anuladas de uma só vez pelo presidente eleito.
No âmbito dos retrocessos socioambientais, salientamos: a destruição da política ambiental; a descentralização dos licenciamentos ambientais; aprovação do maior número de agrotóxicos da história do País; o aumento do desmatamento da Amazônia (13 mil quilômetros quadrados em 2021) e do Cerrado (8,5 mil quilômetros quadrados em 2021); o estabelecimento de subsídios para a geração de energia carvão; o negacionismo científico sobre as mudanças climáticas; a expansão da mineração ilegal em territórios indígenas; a intensificação dos processos de financeirização da natureza (mercado de carbono, pagamento de serviços ambientais), entre diversos outros. Se por um lado, há um capítulo específico sobre meio ambiente no estudo mencionado acima, por outro, diversas organizações da sociedade civil organizada, principalmente associações indígenas como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (ABIP), a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), a União das Mulheres Indígenas (UMIAB), entre outras, nunca deixaram de elaborar diagnósticos da situação nos territórios e de realizar denúncias a nível nacional e internacional frente à violação de direitos garantidos na Constituição de 1988.
Um exemplo emblemático são as denúncias em torno do Projeto de Lei 191/2020, que está tramitando no Congresso Nacional, e que visa estabelecer as condições específicas para a realização de pesquisa e lavra de recursos minerais, hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas. Na luta contra a aprovação do PL 191/2020 se somam grandes ONGs ambientalistas, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e acadêmicas/os e pesquisadoras/es que se posicionam contra a construção de novas hidrelétricas na Amazônia. Neste contexto, diversos são os planos da Eletrobras -ex-estatal do setor elétrico, privatizada pelo governo Bolsonaro em junho de 2022- que está esperando a aprovação desta Lei para iniciar a possível implementação dos mesmos.
A intensificação dos conflitos socioambientais decorrentes das políticas antiambientais, racistas e colonialistas do governo Bolsonaro decorrentes da instalação de grandes projetos de infraestrutura, como os empreendimentos de geração de energia, tem gerado processos de expropriação de territórios e de alteração negativa de modos de vida de quilombolas, comunidades tradicionais, camponesas e povos indígenas. Também estão sendo explicitadas as consequências diferenciadas para as mulheres e os jovens, em especial, as mulheres negras e indígenas. Aqui, é necessário mencionar que, paralelamente aos projetos “tradicionais” de geração de energia, como as hidrelétricas, há um avanço alarmante dos projetos implantados em nome da transição energética e/ou do combate às mudanças climáticas, como são os grandes parques eólicos e solares. Empreendimentos que estão sendo questionados por movimentos e organizações sociais -como o Instituto Terramar e o Conselho Pastoral de Pescadores- por suas dimensões, pelo impedimento do acesso ao mar de comunidades ribeirinhas, pela especulação em torno da exportação futura de hidrogênio verde, e por não serem limpos, já que demandam diversos minerais não-renováveis no seu processo de produção e também combustíveis fósseis no transporte dos equipamentos.
Ao mesmo tempo, em contextos de expansão da fronteira do capitalismo extrativista no país, as mulheres atingidas e ameaçadas se articulam em torno de projetos centrados na circulação e defesa da vida, do corpo, do território e da natureza. Neste sentido, está se dando um fortalecimento da articulação entre os movimentos do campo e da cidade em prol do aumento da produção de alimentos saudáveis com diversidade, agroecológicos, resgatando o conhecimento popular e ancestral. Também a implantação de tecnologias sociais e saberes adaptados à sociobiodiversidade local. Aqui é importante mencionar o fortalecimento da educação popular com jovens negras/os, periféricas/os em espaços organizados como o Periferia Viva, o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), a Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras (RAMA), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), o Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores Sem Teto (MTST).
É na luta contra a destruição dos biomas brasileiros e no enfrentamento do sistema agroalimentar (amparado nas commodities e na relação com o aumento da fome) e energético (inclusive dos impactos negativos relacionados à expansão das renováveis) que muitas organizações sociais e políticas históricas reivindicam seus direitos territoriais, como é o caso do Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), do Instituto Terramar, da Rede de Justiça Ambiental.
Frente a esta conjuntura, alguns compromissos já foram assumidos por Lula durante a campanha eleitoral e em sua primeira viagem internacional (como presidente recém eleito), realizada para o Egito, em novembro passado, durante a 27ª Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas (COP 27). Durante o evento, Lula anunciou a criação do Ministério dos Povos Originários para que os povos indígenas apresentem suas propostas de políticas ao governo. Também afirmou que o “Brasil está de volta” ao debate climático global, ponderou o desafio de enfrentar o aquecimento global e que não medirá esforços para zerar o desmatamento e a degradação dos biomas brasileiros até 2030. Importante mencionar que no grupo de transição de mineração e energia, o governo escolheu uma liderança do MAB.
É justamente no tema de climático que diversos coletivos jovens estão tomando criticamente o tema, alguns grupos estão vinculados com instituições internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU), mas a maioria está nascendo e crescendo desde as comunidades e suas resistências frente a grandes empreendimentos, como é o exemplo do Coletivo Martha Trindade, em Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Segundo Aline Marins, mulher negra, ativista climática integrante do Coletivo Martha Trindade, moradora de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio e graduanda em Biologia pela Universidade Estadual do Norte Fluminense, o coletivo foi fundado em 2016, e atua na resistência à siderurgia Ternium Brasil, antiga Thyssenkrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA). "Nossa origem é parte de um processo de vigilância popular em saúde relacionada com a qualidade do ar diretamente vinculada com a contaminação gerada pela empresa. Hoje atuamos nos debates sobe direito à cidade, saúde e meio ambiente”, completa.
Para finalizar, considerando essas promessas e ao mesmo tempo os imensos desafios que temos pela frente, mais do que nunca é necessário que o movimento social retome, com força, as lutas depois de quatro anos de relativo recuo, tanto em função da imposição de políticas regressivas por parte da extrema direita, como do contexto trágico da crise sanitária que ainda enfrentamos, justamente pelo negacionismo científico e descaso com os setores sociais mais vulnerabilizados. Esta retomada das lutas será fundamental também para garantir a implantação de medidas prometidas pelo governo Lula que assegurem o combate à fome, a redução das desigualdades estruturais da nossa sociedade e arrefecimento da destruição ambiental e da crise climática.
Sobre a autora: Elisangela S. Paim, jornalista, doutora em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires, e coordenadora latino-americana do Programa Clima da Fundação Rosa Luxemburgo