Ser mulher, negra e periférica no Brasil em 2020.

Mariana Andrade
| by fabian.kern@kooperation-brasilien.org

O que sempre foi difícil, piorou nesses últimos meses. Nos encontramos à beira do precipício e as pesquisas desenvolvidas ao longo desse período só refletem a minha própria vivência e de muitos outros amigos, sobre o quanto nos sentimos totalmente vulneráveis e o quanto estamos nessa inércia de medo constante.

Isso não começa agora, só porque estamos no meio de uma pandemia mundial - um momento atípico, bem incomum e triste para todos. Desde o início da nossa existência – enquanto pessoas LGBTQI+ - e das diversas descobertas do nosso próprio ser, onde o desenvolvimento de transtornos mentais como ansiedade, depressão, síndrome do pânico, entre outros tipos se dá através do nosso medo em nos aceitarmos. E, após isso, termos a responsabilidade de nos apresentarmos à família como quem realmente somos de verdade, por conta do julgamento, preconceito e diversos outros ataques que sofremos vindos primeiramente, muitas vezes da nossa própria casa, lugar onde deveríamos nos sentir seguros e amados.

É assustador no momento de pandemia e quarentena ficarmos confinados com nossos familiares e, nesse tempo, nos depararmos com outros perigos: a intolerância e ódio principalmente vindo dos nossos pais. Algo que se intensificou e se legitimou ainda mais após a eleição do atual presidente da república do Brasil, que reflete, em suas falas, a disseminação do ódio contra a nossa comunidade LGBTQI+. Esse ódio fica bastante claro em uma, de suas diversas falas públicas horrendas: “Ter filho gay é falta de porrada”. Desta forma, o presidente apoia e incita à violência, presidente esse que levanta a bandeira das igrejas, que têm grande parte na disseminação do ódio contra a comunidade LGBTQI+ durante centenas de anos, nos demonizando e trabalhando incansavelmente para o retrocesso das conquistas dos nossos direitos. O presidente é, por exemplo, totalmente contrário à criminalização da homofobia, luta incansável do movimento LGBTQI+ e esse é apenas um exemplo dos retrocessos e as políticas de um governo lgbtfóbico e anticientífico, que comanda o país em 2020. Porém, vale ressaltar, o crescimento de muitas outras igrejas com acolhimento e apoio a nós LGBTQI+, algo de extrema importância para a construção de um novo presente, com menos ódio e mais amor.

É extremamente frustrante para nós que lutamos pelos nossos direitos todos os dias vermos a dificuldade e descaso na falta de legislação que proteja e assegure positivamente a nossa comunidade sobre as conquistas junto ao STF (Supremo Tribunal Federal), como o direito de registrar um filho, ter uma união estável ou casamento em cartório. É preciso uma legislação séria que solidifique essas práticas, pois essa sensação de não pertencer e ser “um corpo estranho” apenas é reforçada à medida que a população LGBTQI+ precisa lutar por direitos básicos assegurados a todas/os cidadãs/os. Assim, nos sentimentos discriminados por precisar lutar por tais direitos. Saber que uma grande parte da população não nos aceita ou considera como “cidadãs/aos” apenas por ser quem somos ou amamos mexe literalmente com a nossa cabeça.

Para os que vivem em casas com relações conflituosas, claramente ainda a grande maioria, a violência é muito mais frequente, sejam elas físicas, verbais ou psicológicas e mesmos sendo obrigatório na quarentena estar nelas, muitos sem escolhas fazem das ruas, agora ainda mais incertas e perigosas, “suas casas”.

Trata-se de uma relação contraditória: a família, a casa é, por um lado, um elo importante. Por outro, em muitos casos, é preciso romper esse elo para garantir sua sobrevivência, já que a manutenção desse elo pode ser a própria causa de sua morte.

Não tem como falar sobre a nossa comunidade LGBTQI+ no Brasil sem ressaltar a triste realidade de que o nosso país é o que mais mata transexuais no mundo. 2020 já superou os altos dados de 2019 e não existem políticas públicas para mudar essa realidade. Essa situação nos dá um sentimento de invisibilidade, na qual pessoas são consideradas apenas como números e estatísticas. Mas, na realidade, não é assim: são vidas, histórias e sonhos interrompidos pela ignorância e brutalidade.

Da mesma forma podemos olhar para as mortes por Covid-19 no Brasil e a forma que o atual presidente se comportou e comporta durante a pandemia. Em uma postura negacionista, o presidente desfere falar irresponsáveis. Por exemplo, ao responder à pergunta de um jornalista sobre o número de mortes por coronavírus no país, afirmou não ser um "coveiro", e que é “’Messias’ (nome do meio do presidente) mas não faz milagre”, entre diversas outras declarações que causaram dor aos familiares de mais de 117 mil pessoas mortas pela doença.

Nos encontramos em um nível de vulnerabilidade alta, conforme as dimensões de renda e trabalho, exposição ao risco da Covid-19 e saúde.

O desemprego em massa é principalmente preocupante na comunidade LGBTQI+. Nós sofremos a vida inteira para nos libertar, por conta da independência financeira, único caminho que encontramos. Com o desemprego em alta, hoje nos vemos presos novamente, nos nossos próprios medos da adolescência e essa mistura de diversas problemáticas ao longo da vida nos leva covardemente a um quarto escuro e, com isso, a diversos problemas de saúde mental como a depressão. E essas incertezas apenas são aumentadas, sendo que a fome passa a ser uma ameaça presente. Incertezas que não afetam somente a nós, mas que intensificam todo um histórico difícil já existente por conta do preconceito e medo da violência a qual vivemos sempre em alerta simplesmente por ser quem somos.